Via Franca

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quarta-feira, 1 de julho de 2020

Quarentena - 1º dia


Primeiro de abril, quarta-feira...
Este dia começou, na realidade, na noite anterior... Funcionou às avessas, como um famoso golpe que foi dado no dia primeiro de abril, mas é "comemorado" como revolução, no dia 31 de março.
Como já havia escrito, no meu caso, o dia primeiro começou na véspera... Ao receber a notícia da internação do meu pai, o senhor Edercides Baptista Penna ou "El Cid", na manhã da terça-feira, me organizei para ir para Franca. Por conta do crescimento dos casos da Covid-19, combinei que a minha esposa me levaria, no final da tarde, e me deixaria próximo à Franca, onde o meu cunhado Luizmar me encontraria e terminaria o trajeto comigo.
Passamos na casa do filho dela, o Luiz, em Jundiaí e seguimos viagem, chegando em Brodowski próximo das vinte e três horas, onde o meu cunhado já nos aguardava... Nos despedimos e cheguei na casa dos meus pais, depois da meia noite (já nos primeiros minutos do dia primeiro).
Noite agitada, de pouco sono e muita ansiedade, dormida na cama de solteiro do quarto de brinquedos dos meus sobrinhos. Café tomado, ainda no frescor dos primeiros raios daquele dia, peguei uma carona com a minha mãe até o Hospital São Joaquim, que os francanos chamam de "hospital da Unimed", entrando no quarto do meu velhinho antes das oito daquela manhã... Já havia uma preocupação com a pandemia, então fui com uma máscara decente, mas percebi que até mesmo os profissionais de saúde do hospital estavam sem os equipamentos tão necessários nos dias atuais (escrevo este texto no primeiro dia de julho).
Confesso que nunca é confortável entrar em um hospital, nem como visitante, mas naquele dia senti um nó bem grande na minha garganta, pois além da preocupação natural com o meu pai, parecia que eu estava pisando em campo minado (volto a repetir, o vírus, desde o princípio, me assustou muito).
Não me lembro o número do quarto, mas por conta da idade dele, oitenta e três anos e por já existirem casos suspeitos por contaminação do corona vírus na cidade (alguns até internados em uma ala específica do hospital), o internaram na maternidade... Foi estranho, pois no caminho até ele, percorrendo corredores e rampas intermináveis, fui cruzando com acompanhantes exultantes e portas decoradas com nomes de crianças e suas respectivas mamães. Imaginei até o interior delas com famílias misturando a alegria da natalidade com a angústia de uma doença ainda pouco conhecida, muito próximas, separadas apenas por alguns corredores...
Ao achar o quarto do meu velho, encontrei ele de muito bom humor, apesar de debilitado por uma hemorragia causada por uma infecção na bexiga, ocorrida na segunda-feira, dia trinta. Estava contando histórias, o que ele mais sabia fazer, e atazanando a caçulinha dele, a minha irmã Érica, que havia dormido lá, o acompanhando...
Ficamos felizes ao nos ver, nós três.
Já fazia algum tempo que eu não viajava para Franca e neste período, cerca de dois meses antes dessa internação, El Cid havia caído na nossa chácara e foi perdendo os movimentos das pernas gradativamente... Nos meus ensaios de me deslocar para visitá-lo, passou todo este período.
Daí, encontrei o meu pai em um leito hospitalar, com uma hemorragia causada por uma infecção na bexiga, com uma sonda urinária e sem firmeza nas suas pernas. Mas, ele estava muito bem humorado, apesar da situação brincando que quase "partiu antes do combinado"...
Nos despedimos da minha irmã e tomamos mais um café juntos, com as sobras que ainda estavam no quarto do seu desjejum.
Conversamos bastante, ele se atentou para o tamanho da minha barba e fizemos um dos nossos programas preferidos, que lembro desde a minha infância: ouvir música clássica.
Como havia levado o meu computador, entrei no Youtube e já recebi a escolha da primeira obra da seleção que rolaria naquela manhã, a "Ave Maria" de Schubert, executada pela orquestra do André Rieu, que ele adorava.
Ficamos ouvindo em silêncio, uma seleção criteriosamente feita por ele, sendo interrompida apenas pelas entradas regulares de enfermeiros e de uma nutricionista. Inclusive, na entrevista feita por ela para o envio do almoço, ficou exagerada uma das características do seu Edercides, as restrições de paladar... Toda atenciosa e gentil, a moça perguntou para ele o que mais gostava e o que não comeria de jeito algum! A resposta foi rápida, jiló... De resto, "gostava de tudo".
Então, a doutora, sugeriu um filé de frango com creme de milho. Ele disse que não gostava de creme de milho e nada que tivesse molhos brancos e cremes na comida.
Decidido, viria só o filezinho.
Como entrada ela sugeriu uma sopinha de legumes... O meu pai sacramentou que também não gostava de sopas, de nenhum tipo...
Ótimo, sem sopa, então, mas poderia ser uma salada... Aí o velhinho concordou, mas que não tivesse tomate com sementes, quiabo, folhas amargas e milho verde em grãos.
Chegaram a um denominador comum e a nutricionista saiu brincando que, de fato, o meu pai não gostava "apenas" de jiló...
Preparados para passarmos uma noite juntos lá no hospital, havíamos até escolhido filmes para assistirmos juntos no meu computador, quando passou o médico, apreensivo com o quadro dele, mas mais preocupado em mantê-lo lá, por conta dos riscos de contaminação.
O meu pai recebeu alta e voltamos para casa depois do "chá da tarde", britanicamente...
Em casa, teve reunião dos Pennas, Limas e Cruvinel, numa boa prosa com a família (em todo este período de isolamento as minhas irmãs se cuidaram muito para continuar visitando os meus pais).
Neste dia, fiz algo que jamais havia feito: dei banho nele.
Confesso que já havia pensado nesta possibilidade de ajuda, muitas vezes antes, mas me pegou de surpresa, pois ele pediu que apenas eu fizesse isso.
Foi um dos momentos mais sublimes dos meus últimos anos, pois a sensação de utilidade, de carinho, de confiança que senti, não consigo detalhar... Ele me dava banhos, quando criança... Ele fazia movimentos cuidadosos para eu não me assustar com a água morna batendo no meu corpo, me ensaboava com atenção e não deixava eu me sentir envergonhado, mesmo quando já era um pouco maior... Isso tudo veio para mim como um instinto e me senti literalmente útil, num reforço de laços genéticos, que me marcou até hoje.
Secar parte do corpo dele, vesti-lo cuidadosamente para não deslocar a sonda, pentear os fios ralos do seu cabelo, foi sublime.
Depois desse dia, foi aumentando a sua autonomia quanto ao banho, a ponto de fazer tudo sozinho poucos dias depois, mas naquele fim de tarde, ele generosamente me permitiu ajudá-lo na plenitude.
Acabamos o "dia da mentira" com a relação mais verdadeira de amor, admiração e respeito que pai e filho poderiam ter.
E eu, aliviado, por tê-lo novamente em casa...


 

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