Via Franca

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domingo, 9 de agosto de 2020

Quarentena - 40º dia


 Dez de maio... Domingo...

Último dia que passei ao lado do meu pai... Na realidade, últimas horas, pois eu viajei logo de manhã para encontrar a Eliane, minha esposa, que estaria me esperando em Pirassununga. A Érica, minha irmãzinha caçula, e o Luizmar, meu cunhado, marido da minha outra irmã que também se chama Eliane, me levariam até ela. Saímos de casa, por volta das nove horas da manhã. Tomei o café com os meus pais (o meu último com ele), conversamos um pouco, cortei mamão para ele e fiz vitamina de frutas, como em todas as manhãs neste período que passei lá em Franca. No dia seguinte, El Cid iniciaria o tratamento de radioterapia para combater a metástase na coluna, de um câncer que nunca soubemos qual foi a sua origem. Ele estava bem ansioso, pois tinha esperança de voltar a andar sem o auxílio do andador, poder dirigir novamente, trabalhar na chácara, ir fazer as tradicionais compras no varejão e na feira, levar o Gabriel, seu netinho, para jogar bola na escolinha, buscar a Isa, outra netinha, na escola, passear com a Dudinha, a caçulinha, na pracinha, entre outras coisas.

Este domingo foi especial, pois o dia dez de maio é o aniversário da minha mãe, o dia que fui batizado e também o meu casamento no civil, com a Eliane. E, em 2020, era o domingo do "Dia das Mães"... Inclusive, quando comecei a escrever estas quarenta postagens, que chamei de "Quarentena", programei para terminá-la hoje, dia 09 de agosto, também um domingo, "Dia dos pais".

Pude passar quarenta dias ao lado do meu pai, desde o dia 01 de abril, relembrando muitas histórias, compartilhando carinho, amor, cuidando dele e aprendendo ainda mais, com os seus ensinamentos e lucidez... Usufrui do seu bom humor, da sua esperança, da dramaticidade de algumas situações e da esperança, que me contaminou até o dia que recebi a notícia, no dia vinte e um de maio, do seu falecimento.

Fui privilegiado... Recebi um presente de Deus, por conseguir me despedir dele, lentamente, com toda a intensidade e saindo de Franca com a certeza que o veria de novo.

Na imagem que postei (desculpe-me, mamãe, por colocá-la de pijama na postagem, rsrs), eu já estava dentro do carro, me despedindo deles... Já tinha ganhado um beijo, um abraço demorado e um pedido carinhoso para me cuidar... Nos despedimos com o tradicional "eu te amo", quando lhe pedi a benção... É a última foto dele... 

Foi a última vez que o vi... Foi a nossa despedida...

Te amo, pai. Te amo...



 


sábado, 8 de agosto de 2020

Quarentena - 39º dia

 

Nove de maio... Sábado...

Festa de aniversário da Dudinha, na casa da Érica. Por conta do isolamento imposto pela Covid-19, os presentes eram apenas nós, da família próxima: El Cid, mamãe, André, Érica, Gabriel, Dudinha (que já havia completado dois aninhos no dia 19 de março), Eliane (minha irmã), Luizmar, Isabela e eu...

Foi nossa última festa juntos, na casa da Érica, depois dela sempre terá uma ausência sorridente nas nossas fotos... Ele gostava de celebrar... Fez questão de tirar o andador, para não aparecer com ele na imagem. Eu fiquei temeroso, já que El Cid perdeu praticamente toda as suas forças nas pernas, mas confesso agora, que fiquei feliz por ele ter feito isso... Guardamos a imagem invencível, indestrutível que ele sempre passou para todos nós.

Lembramos de uma história antiga, que nos garantiu boas risadas... Quem já morou ou dirigiu no interior do nosso estado, sabe que a condução do veículo é bem diferente daquela da capital.

Como em São Paulo o trânsito flui mais agressivo, com muito mais carros do que em qualquer outra cidade do Brasil, acaba gerando um acordo tácito entre a maioria dos motoristas.

Por incrível que pareça o uso da seta é mais comum aqui, na capital do estado, do que em outros lugares e muitos motoristas cedem um pouco do espaço que poderia ser ocupado pelo seu carro para que o condutor consiga sair da sua vaga ou de uma parada obrigatória numa rua mais movimentada.

No interior não tem isso, não!!

Muitos nem se lembram de ligar a seta, odeiam diminuir a velocidade para outros passarem (inclusive para pedestres) e acham que possuir um carro, os diferencia daqueles que andam pelas calçadas.

Por isso, quando ando a pé ou de bicicleta pela minha cidade, redobro a atenção, ao atravessar ruas e avenidas. Aqui, na metrópole, também me cuido, mas sei que muitos vão me permitir atravessar a rua entre o seu carro e o da frente, sem acelerar de maneira ruidosa (excluo, aqui, os motociclistas).

Tanto que, ao vir com o meu pai para cá, fui atravessar uma rua movimentada de Guarulhos entre dois carros (o de trás diminuiu para que pudéssemos passar), mas El Cid titubeou e não quis arriscar-se, negando-se a me acompanhar na "aventura"...

Brinquei com ele, depois de esperar algum tempo para chegar na outra calçada:

- "Poxa, pai, pode ficar tranquilo, porque os motoristas daqui diminuem um pouco para que os pedestres possam atravessar. Da próxima vez, pode confiar!!!"

E ele, de pronto, afiadíssimo, como sempre:

- "Eu não! E se o motorista justo daquele carro for de Franca??"

Pois é, depois desta constatação, eu também nunca mais confiei...




sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Quarentena - 38º dia

Oito de maio... Sexta-feira...

Véspera da festinha de dois anos da netinha dele, a Dudinha... A comemoração seria na casa da minha irmãzinha caçula, a Érica... Mesmo quase dois meses depois do aniversário mesmo dela, a comemoração seria feita, apenas para "os de casa"... Como nos outros dias, El Cid, estava reclamando um pouco da demora em poder voltar a andar, naturalmente, sem apoio ou ajuda de andador.

Ele tinha uma característica que era bem peculiar... Tinha uma facilidade invejável de decorar nomes... Se orgulhava de saber todas as capitais dos países do mundo... Era divertidíssimo conversar sobre isso com ele, pois além de me citar o nome da cidade, também contava alguns detalhes sobre a maioria delas 9as preferidas eram aquelas que tinham alguma relação com a Antiguidade) e ainda existiam... 

O amor dele por mapas era único também. Tinha um atlas e um guia que sempre consultava quando ouvia sobre os lugares... mesmo quando conhecia bem, ia dar uma conferida lá...Antes de qualquer viagem nossa, ele pegava o Guia Quatro Rodas do começo dos anos 2000 para verificar as cidades que passaria no caminho para contar histórias delas no carro (nas últimas décadas virou passageiro, então tinha muito tempo para ficar "observando as paisagens" no deslocamento, característica que herdei dele, com certeza)... Desde criança, nos dinos da Viação Cometa, El Cid vinha narrando as localidades que estariam no caminho até  terminal rodoviário da Praça Júlio Prestes (aquele com acrílicos coloridos, bem psicodélico, que não existe mais)... Anuncia com boa antecedência, sempre com alguma história pessoal naquelas que ele já tinha pisado, Batatais, Brodowski, Ribeirão Preto (a sua preferida, que nutria "falsa rivalidade", rsrs), Cravinhos, Porto Ferreira, Pirassununga, Leme, Araras (que a Érica quando criança perguntava se era "Araras Quaras"), Limeira (a parada mais antiga para banheiro, onde ele se levantava antes mesmo da chegada, para deixar bem claro que conhecia bem o trajeto), Americana, Sumaré, campinas, Jundiaí e São Paulo... Quando eu viajava sozinho, mesmo fora do Brasil, ele usava oseus livros e material de consulta para conversar comigo sobre onde eu iria... Era detalhista, pois gostava de saber sobre pequenos trechos, específicos, que eu poderia não ter atenção... Era extasiante, quando me apontava algum detalhe que tinha me fugido, no meu planejamento e íamos pesquisar juntos, no meu celular ("filho, dá uma olhada sobre isso...")...

Por falar em viagens, era o único, notem a palavra que usei, o único, que me pedia para ver as fotos das minhas viagens... Como adorava ver fotografias... Eu fazia uma segunda viagem quando as mostrava para ele... Inclusive, em muitos lugares os cliques eram feitos para uma posterior conversa com ele... Lembro-me quando fui para o  meio oeste americano, em julho de 2018, e fotografei Monument Valley de diversos ângulos... Divertimo-nos muito, depois, tentando lembrar de filmes de faroeste rodados naquelas paisagens... Eu tirava muitas fotos para ele, pois tinha a certeza que o meu pai, viajava pelo meu olhar. Eu sabia que ele jamais conseguiria conhecer as paisagens das novelas de cavalaria, o solo onde Cristo percorreu, os desertos de beduínos e tuaregues, os portos de onde saíam barcos vikings, as montanhas disputadas por indígenas e colonos americanos, as cidades das "mil e uma noites", a Itália de Puccini... Então, eu viajava também por ele.

Os velhos álbuns de fotografia, cuidados com esmero e guardados até hoje dentro do móvel da sala, são testemunhas da sua paixão em registrar momentos importantes da nossa família... Temos uma linha de tempo rica, organizada por ele... Uma pessoa que gostava de ficar em casa, mas também amava lugares distantes. Com isso, assistia muita TV e amava programas de viagens e documentários, onde um dos seus preferidos era o "Brasil Visto de Cima", religiosamente assistido todos os dias que passava... Quando eu estava em Franca, víamos juntos... Ele adorava "trocar uma ideia" sobre os lugares que eu já havia passado, visitado e que era mostrado no programa ("você viu isso lá, filho?", "não é aquilo que apareceu na foto que você me mostrou"?)... Confesso que até hoje, não consigo assisti-lo mais... Dá um aperto no peito... Tenho que superar isso.

O meu amor pela história e geografia, vem bastante da influência do meu pai... Os velhos álbuns de fotografia, cuidados com esmero e guardados até hoje dentro do móvel da sala, são testemunho disso.


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Quarentena - 37º dia

Sete de maio... Quinta-feira...
Noite tranquila, El Cid acordou de muito bom humor... Brincou, como todos os dias sobre a quantidade de remédios que tomava... Comeu bastante... Demos muitas risadas, nós três, na mesa de um desjejum que demorou bastante...
Uma parte da conversa foi sobre loterias e jogos de azar...
Sempre tivemos na família pessoas que gostavam de apostar em alguma forma de jogo... Felizmente, nada compulsivo, como aquelas velhinhas que frequentam o submundo de bingos clandestinos ou os fanáticos pelo colorido iluminado dos caça níqueis que estão espalhados por botecos da periferia da grande São Paulo. Seu Elpídio, meu avô paterno, amava os carteados e, até o seu passamento, sempre fazia os seus joguinhos na loteria esportiva e na Loto... Chegava a suar frio, quando acertava algum número na sua conferência (não me lembro dele ter acertado mais do que dois números em nenhum jogo, rsrs). Esta sua mania (ou seria vício?) passou para o seu filho do meio, no caso o meu pai...
Sempre que pode, El Cid, fazia os seus joguinhos (preferia a megassena), usando a mesma combinação de números que retirava das datas de nascimento dele e da minha mãe: 10, 05, 48, 21, 09 e 36.
Ele fazia sempre a aposta mais simples e dizia que gostaria de acertar junto com outros apostadores (não queria ser o "único ganhador") para que não chamasse muito a atenção... Gostava do "anonimato, discrição para estas coisas", rsrs... Claro, que não jogava sempre, mas conferia impreterivelmente os resultados, apostando ou não... Inclusive, anos atrás, quase chorou de raiva, pois teria acertado uma quina, se tivesse se arriscado na lotérica.
Todo domingo, até um bom par de décadas trás, ele saía com o cachorrinho da família, o Zuzu, até a pracinha da Jussara para comprar o Comércio da Franca e conferir o resultado do sorteio do dia anterior (como já escrevi, fazia isso mesmo quando não jogava)... Era uma rotina semanal bem interessante.
Num desses domingos em que eu estava em Franca, acordei muito cedo e entrei no computador para ler algumas mensagens.
Ao abrir a página do site, vi que havia um único acertador da megassena acumulada, justamente da cidade de São Paulo... Anotei os números que foram sorteados, em um pedaço de papel, e esperei o meu pai chegar com o jornal. Ao entrar na cozinha, fui até ele e mostrei o papel que eu havia copiado da tela do computador, dizendo que eu os havia jogado durante a semana, mas tinha deixado o bilhete no bolso do meu jaleco de professor, na escola.
Ele achou interessante a minha iniciativa, já que eu nunca aposto em nada que envolva dinheiro ou outros bens... Brincou até que a minha sorte de principiante poderia trazer algum acerto...
quando começou a conferir os números, acreditando que eu havia jogado, de fato, arregalou os olhos e começou a tremer (o jornal balançava, nas suas mãos, como se estivesse numa manhã de muito vento, igual às "frescas" que sempre sopram na nossa cidade)...
Olhou para mim e com voz embargada, me perguntou se era verdade mesmo... O riso aberto de galhofa foi substituído por outro de tensão!!!
Óbvio que, temendo o pior, eu disse que era uma brincadeira, pois eu já sabia a sequência sorteada...
Até hoje, eu não sei se a expressão dele após aquele momento foi de decepção ou de alívio...
Mas, a certeza que ficou foi que perdi totalmente a credibilidade em relação a algum sucesso que eu pudesse ter em sorteios e rifas... Tudo bem que nunca mais apostei, nem em título do tricolor do Morumbi.




quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Quarentena - 36º dia

Seis de maio... Quarta-feira...
Novamente, acordou com um pouco de pessimismo em não conseguir o movimento pleno das pernas,,, Para quem sempre foi irrequieto, gostava de caminhar, isso era um tormento.
Não sei exatamente o porquê, mas nesse dia lembramos do "dia de Reis", comemorado em 06 de janeiro... Lembranças que me remeteram ao nosso cotidiano simples, de gente caipira, que sempre valorizou as tradições culturais...
Nem tenho certeza se meu pai curtia tanto assim os reisados (as cavalhadas, tenho certeza que amava), mas El Cid sempre me levava para acompanhá-los.
Um adendo histórico: apesar de ser uma tradição portuguesa, inspirada na tradição católica de visita dos três Reis Magos ao menino Jesus, as Folias de Reis chegaram ao Brasil no século XVIII e se popularizaram entre os habitantes de muitos estados (principalmente Minas Gerais, Goiás e São Paulo)... É, inclusive, patrimônio imaterial do estado de Minas Gerais.

Desde criança, a minha ligação com as folias sempre foi muito grande... Para mim, elas representam uma das manifestações populares mais autênticas e expressivas que existem... O meu avô materno, Antônio, as apreciava e ouviu todas as suas variações até próximo do seu passamento... O meu pai até bem pouco tempo atrás, ficava antenado nos dias de apresentações delas, lá na nossa Franca, e me ligava: "filho, sábado tem apresentação das folias, lá na exposição... Você vem?" E, eu ia... E ficávamos horas no meio da festa (os meus olhos marejaram, agora).

Faço um aparte, para acrescentar nestas memórias, outras personagens também muito significativas para mim (e que também eram para El Cid)...

O que me marcou mesmo sobre os reisados, foi na infância, no sítio da tia Geralda, lá em Ituverava, próximo ao povoado de Capivari da Mata, quando eu ia passar férias com a minha vó Zilda, a minha madrinha... Como sempre estávamos lá entre o Natal e o dia de Reis, era comum presenciar as apresentações das folias, no sítio dela...

Lugar bucólico, sem energia elétrica, iluminado por lamparinas à querosene, dormia-se muito cedo ("com as galinhas", segundo uma expressão muito usada na época)...Mas, nas madrugadas sempre vinham os foliões com as suas bandeiras, roupas coloridas, violas, sanfonas e pandeiros enfeitados com fitas... Lembro-me de acordar com uma música bem distante e olhar pela janela, na amplidão do pasto que rodeava a antiga casa, enxergando as luzinhas cintilantes dos candeeiros deles... O coração já acelerava... A música crescia na medida que se aproximavam e havia toda uma reverência para adentrar a casa... Sempre era oferecido cachaça para os foliões, dinheiro na forma de esmola para a igreja e um delicioso bolinho de polvilho, servido para todos, com café (não era o biscoito tradicional que conhecemos aqui em São Paulo, mas um bolinho sovado com erva doce e frito na hora, crocante por fora e muito macia no seu interior, uma das especialidades da minha família, para a "merenda").

Os foliões cantavam, dançavam e bebiam muita cachaça... E nós, da casa, ficávamos ali atônitos, extasiados, hipnotizados pelo colorido e pelas vozes agudas e bem afinadas... A reverência de oferecer a bandeira para a dona da casa, que a beijava e era consagrada por ela, tinha uma beleza ímpar.

Lembro-me que os palhaços sempre me assustavam e para amenizar os meus primos, bem mais velhos do que eu, Francisco, Maria das Graças e Antônio José, me diziam: "deixa disso, moleque, é o Acácio da tia Jerominha que tá vestido assim para zombar de ti..." Era nada, rsrs, o Acácio era bem mais alto e gordo que aquele marungo!!!!

Os foliões eram todos lavradores, vizinhos da tia Geralda (muitos até nossos parentes), que haviam trabalhado o dia todo na roça, na enxada, debaixo de sol e chuva, mas à noite se transformavam em seres divinos, que trocavam o seu cansaço pela alegria de louvar e encantar a todos nós... Era sublime...

Tem cenas que sei que nunca mais vou viver, até mesmo porque faltarão os seu protagonistas... Esta é uma delas... Felizmente, ainda está viva e bem forte na minha memória... Pulsando, como a figura de El Cid.



terça-feira, 4 de agosto de 2020

Quarentena - 35º dia

Cinco de maio... Terça-feira...
Seguem os exames preparatórios para a radioterapia... A maior esperança do meu pai é voltar a caminhar sem o uso de apoio... Ele chegou até a confidenciar para a minha mãe, que se não voltasse a caminhar, perderia todo o sentido de "continuar seguindo".
A nossa família é bem sólida e sempre foi valorizada por El Cid e pela dona Elenice... Mas, mesmo eu e as minhas irmãs criados de maneira idêntica, crescemos com características e personalidades muito distintas.
Como primogênito eu sempre fui o "centro das atenções", mas sofri um baque com o nascimento da Eliane, minha primeira irmãzinha, aos meus cinco anos de idade.
Inicialmente, tive muita curiosidade e até curti, mas quando tive a certeza que deveria dividir as atenções gerais também com aquela pequenininha, foi terrível...
Baixou o ciúme... Nunca me deixaram esquecer que no primeiro aniversário dela, a minha mãe teve que espalhar os brinquedos pelas duas camas, cantar parabéns para os dois e fingir que comemorava alguma coisa também para mim. os parentes até tinham se acostumado com os ataques de choro e birra, quando a pequenininha recebia mais atenção.
Independente disso, crescemos com aquela boa cumplicidade de irmãos (uma exigência dos meus pais), sempre unidos, socializando brincadeiras, aprontando muito e sofrendo todas as consequências, também juntos, das incontáveis travessuras.
As brigas eram comuns, mas foram diminuindo com o tempo.
Até que, surge uma nova pessoinha.
Quatro anos mais nova que a Eliane, era ainda mais mimada e protegida do que nós, os mais velhos.
Sempre foi bonitinha, calma e muito meiga, por isso todos se encantavam com ela, principalmente nós, seus irmãos.
Morávamos numa casa muito pequena, de fundos, na Rua Francisco Társia, bem no coração da Vila Nova, construída no quintal do terreno da casa da minha avó. Tinha dois quartos que, antes da chegada da caçulinha, eu tinha exclusividade em um deles e o outro era dividido entre os meus pais e a Eliane.
Com mais uma criança na casa, comprou-se um beliche para acomodar a Eliane e eu no quarto que antes era só meu e o bercinho passou a ser ocupado pela Érika.
É claro que, essa obrigação de dividir o espaço do pequeno quarto, fez surgirem novas rusgas entre os irmãos mais velhos. Brigava-se por quase tudo, mas principalmente pelas preferências distintas, em relação à iluminação do quarto. Eu, que dormia na parte de cima e tinha a luz bem no meu rosto, queria a lâmpada apagada. A minha irmã do meio que, por dormir embaixo, tinha uma pequena penumbra proporcionada pela presença da cama de cima e tinha muito medo do escuro, queria o quarto iluminado (dizia que a escuridão lhe dava "falta de ar"). E a caçulinha, no quarto dos meus pais, reclamava que não conseguia dormir por conta da bagunça no nosso quarto.
Hoje, todos lembramos com graça disso tudo, pois chegava a ser uma cena de "comédia pastelão"... Eu descia do beliche e apagava a luz. A Eliane esperava eu subir de volta, me cobrir, e ia até o interruptor e acendia-a. Eu descia, apagava-a novamente, ameaça a minha irmã e voltava para a cama... Ela esperava um pouco e acendia de novo.
E, assim a noite avançava, com um fim só quando algum dos dois cedia.
Mas, a história que eu e meu pai lembramos nesta data, foi um dia que ninguém cedeu e, por isso, começou uma algazarra infernal. Daí, El Cid, bem impaciente, exaurido por um dia cansativo e influenciado pelos pedidos da irmãzinha menor que não conseguia dormir (na realidade eu acho que ela queria estar conosco, no fuzuê), resolve intervir.
Vai até o quarto, chama a nossa atenção de maneira ríspida e decreta:
- "Se eu ouvir mais um pio neste quarto, os dois vão dormir quentes (é fácil entender o que é dormir quente, né?)..."
Quando tudo levava a crer que a paz estaria reestabelecida naquele local, armistício decretado, ele vira as costas e a Eliane sacramenta:
- "Piu..."
Gargalhada geral, uma boa surra e a caçulinha no outro cômodo, de alma lavada pelo corretivo aplicado, vibrava: "isso, papai, bate mesmo nesses moleques..."
E, assim, era sedimentada a união de nós três, que existe até hoje entre eu e as minhas irmãs.




segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Quarentena - 34º dia

Quatro de maio... Segunda-feira...
Levantamos bem cedo para fazer uma tomografia no Hospital do Câncer, de Franca... Quem nos levou, dessa vez, foi a minha mãe... O medo do Covid-19 era visível, mas mesmo assim, sentimos um pouco de descaso por parte de muitas pessoas... Parece que poucos, como nós, estão levando a sério o isolamento e as recomendações para evitar o contágio. Ficamos tristes, por esta situação.
No hospital, fizeram umas marcações no tórax dele, como se fossem um X de alvo para atiradores... Demos muitas risadas disso, pois a sugestão era dar estilingues para os moleques lá de casa, deixar El Cid sem a camisa e usá-lo como "alvo móvel" para tiros de castanha de coquinho catarro... Isso rendeu piadas para quase uma semana.
Ele sempre curtiu muito o tempo que teve como militar, ou no tiro de guerra de Franca ou na Marinha, no Rio de Janeiro. Gostava muito da ordem, da hierarquia e, principalmente, de armas, em geral.
Sempre teve várias e se orgulhava de uma Winchester que levava sempre consigo nas pescarias, quando solteiro (teve que vendê-la depois do meu nascimento, mas ainda continuou com um Mauser, escondida no guarda-roupa). Uma dessas histórias, que ele contava sempre, foi numa viagem de diversão com outros amigos (iam de Lambretas) para o Rio Sapucaí-mirim, que atravessa municípios vizinhos da nossa cidade, ficaram dando tiros na superfície da água, só para ouvir o "assovio" que o projétil fazia ao se distanciar. Claro que isso, chamou a atenção de um segurança de uma fazenda próxima, que se dirigiu até o local para verificar o que estava ocorrendo (a caça sempre foi proibida na área). Ele contava que o homem chegou no grupo, os repreendeu e disse que teria que confiscar a arma. Um dos dos amigos do meu pai, conhecido como Barbeiro, que estava com a Winchester na mão, disse categoricamente, que seria um "ato temeroso" tentar retirar sozinho e desarmado, uma arma das mãos de quatro desconhecidos... Parece que o argumento foi bem razoável, pois o segurança foi demovido da sua ideia original, mas mesmo assim saiu ameaçando o grupo de denúncia na força policial. Claro, que eles nunca mais voltaram ao local e, acredito, seriam incapazes de atirar em alguém (em relação a El Cid, tenho certeza disso).
Após a morte do meu avô, ele também herdou um 38 cromado que foi entregue na delegacia, junto com a outra pistola, depois do decreto de desarmamento, de anos atrás... Era muito engraçado, pois sempre que íamos viajar, ele brincava que não podia esquecer de levar o "38 dele"... No caso, era o chinelo (ele calçava 38, rsrs)...
Sempre admirei o bom humor e a seriedade dele e, mesmo odiando armas, gostava de ouvir as suas boas histórias sobre elas.
 

 

domingo, 2 de agosto de 2020

Quarentena - 33º dia

Três de maio... Domingo...
Mais uma vez, dia de irmos para a chácara.. Expectativa para o exame do dia seguinte que irá direcionar o tratamento com a radioterapia... Já levantamos conversando sobre isso. Há uma esperança incrível, que a radiação ataque o tumor e que ele volte a caminhar sem o andador, que volte a ter firmeza nas suas pernas.
Certa vez, ainda pequeno fui levado para a empresa que meu pai trabalhava para acompanhá-lo em algumas horas de "serão noturno" para recuperar um pouco do serviço atrasado.
Era uma usina de laticínios, bem conhecida na cidade, e ele trabalhava no escritório dela, cuidando de alguns papéis da contabilidade.
Ele me colocou em uma das mesas do fundo e ficou na escrivaninha dele, datilografando algumas saídas de produto.
Eu peguei uma folha de papel e comecei a desenhar... Curioso, como qualquer criança de oito anos, ao vê-lo cioso com as notas fiscais, comecei a mexer na mesa que eu estava sentado. Peguei na gaveta outras canetas, um lápis borracha, algumas folhas de papel carbono e dois carimbos.
Num deles eu li o nome da pessoa que era a responsável pela mesa que eu estava acomodado.
E, pasmem, ela tinha o nome muito semelhante da minha avó materna, que cuidava de mim durante o dia e que, naquele exato dia, tinha me delatado para a minha mãe uma malcriação que eu tinha cometido, resultando em uma pequena dura.
Mordido com aquela situação que acabava de voltar à minha mente, irado com a minha avó, eu não pensei duas vezes: peguei uma das folas de papel e escrevi os maiores impropérios que eu conhecia, usando o nome da minha avó como sujeito, mas que era quase homônima à dona da mesa em que eu estava.
Raiva destilada, já leve por ter podido colocar em palavras tudo o que eu sentia naquele momento, piquei em pedacinhos bem miúdos aquela folha de papel e atendo o chamado paterno para deixar o escritório e voltar para casa.
Tudo perfeito, só que eu não tinha percebido um pequeno detalhe: a folha de papel que eu tinha utilizado era um dos carbonos que eu havia retirado da gaveta.
N outro dia, a quase xará da minha avó, ao sentar-se na mesa, quase teve uma síncope, ao ler vasto "conteúdo atentatório contra a sua pessoa".
Deu um "piti" homérico, um escândalo daqueles, que abalou a pacífica estrutura do local.
Os chefes foram chamados, os funcionários foram convocados e, antes de qualquer investigação mais minuciosa (ela já tinha acusado um contínuo que "não morria de amores por ela"), o meu pai ao se aproximar da mesa, sentenciou de maneira extremamente honesta:
- "Esta é a letra do meu filhos, que eu trouxe comigo ontem à noite, quando vim terminar o trabalho após o expediente!"
Nem precisava escrever que ele foi firmemente repreendido e quase demitido.
Além de muito envergonhado, o meu velho estava muito nervoso e, por sorte, foi parado pela minha mãe antes de me encontrar.
Após ouvir atentamente a história que foi contada para ela, percebi que eu levaria uma sova daquelas...
Casa pequena, eu no quarto sem ter como pular a janela, que estava trancada, ao ouvir o meu nome, não pensei duas vezes, fui correndo para o banheiro e me tranquei lá dentro.
O meu pai batia na porta e me ameaçava, dizendo que, se eu não abrisse, o "coro seria dobrado" (já dá para imaginar o significado de "coro", para esta situação).
De jeito nenhum eu abriria aquela porta.
Aguentaria ali, sentadinho no trono, bebendo água da torneira e rezando por, pelo menos, duas semanas...
Como ele viu que ameaças não me intimidariam, pegou uma chave reserva na gaveta e colocou na fechadura (quem tinha criança pequena em casa, sempre guardava "chaves reservas" na gaveta).
Após isso, o que transcorreu foi quase uma "comédia pastelão", pois ele girava a chave para abrir a porta e eu, do lado de dentro, girava ao contrário para mantê-la fechada.
Como não daria em nada, caberia somente um acordo mútuo para por fim ao impasse.
Após quase duas horas de intransigência e mais calmo, ele me pediu para sair, pois só tínhamos um banheiro em casa e a minha irmãzinha queria usá-lo (eu tinha percebido o choro dela).
Fiz ele me garantir que não me castigaria.
Como ele sempre foi um homem de palavra, abri a porta, após a promessa que não levaria uma surra dele.
Naquela noite, apanhei da minha mãe...


sábado, 1 de agosto de 2020

Quarentena - 32º dia

Dois de maio... Sábado...
Hoje mais disposto, foi receber o entregador de gás... Conversaram um pouco sobre a vida e El Cid ficou feliz em receber votos de melhoras... Ele valorizava muito ter a simpatia das pessoas que não tinham uma convivência diária com ele... Gostava mesmo de agradá-las e ser útil, até mesmo aos quase estranhos.
Hábito comum no interior é a pescaria.
Hoje em dia, com rios poluídos e poucos peixes à disposição, cresceu o número de pesqueiros, os famosos "pesque e pague".
Mas, no tempo que ainda se "amarrava cachorro com linguiça", a atividade era feita à beira de rios e córregos, sentado no barranco, municiados com varinha de bambu e minhoca.
Lembro-me das minhas primeiras pescarias ao lado do meu pai.
Íamos sempre em número suficiente para evitar qualquer tédio, caso não aparecesse algo que quisesse se submeter aos nossos anzóis.
A preparação começava na véspera, com a escolha da vara correta, específica para cada tipo de peixe.
Eu era encarregado de conseguir um bom número de anelídios, que eu buscava nos canteiros da horta dos fundos da casa da minha avó.
Tinha que fazer escondido, pois aquela história que "cada enxadada era uma minhoca" é coisa do folclore futebolístico. Eram muitas enxadadas, que deixavam os canteiros praticamente destruídos, por isso tinha que fazer em um horário que ela não estava na residência.
E, depois tentar ajeitar um pouquinho as cenouras, beterrabas e almeirões caídos.
Compravam-se mantimentos e muita cachaça (pena que o excesso e bebida acabava com a pescaria de algumas pessoas). Para a molecada fazia suco de groselha, que era colocado em garrafas limpas de leite. Nos dias mais frios também levava-se, em garrafas térmicas, café e um pouco de chá de cravo, para amenizar o frio úmido e cortante da beira do rio.
Não existia vestimenta específica para a pescaria.
A minha mãe só deixava eu usar uma roupa bem velha, complementada por botinas e um boné.
O transporte era uma velha Rural do meu tio, que ia apinhada de tralhas e pessoas.
O almoço era feito no próprio lugar, em uma parte mais afastada do rio, entre as árvores.
Lembro de uma vez, que El Cid fora encarregado de fazer o almoço, mas cozinhar não era o seu ponto forte, rsrs... Foi inesquecível... Ele lavou bem os grãos, escorreu, picou cebola e alho e colocou para refogar em uma pequena porção de óleo de milho, junto com o arroz.
Tanto arroz que quase chegou até a boca da caçarola (era muita gente).
Completou com água e ficou observando a sua grande aventura culinária, comigo ao lado, dando uma força.
Depois de um tempo, vimos que a tampa da panela estava estufando com o arroz crescendo e quase saindo da mesma. Ele não pensou duas vezes: colocou uma pedra em cima da tampa.
Naquele dia, os peixes foram "cevados" com uma pelota de arroz bem temperadinha e nós passamos a Biscoito Mabel.
Lembro-me também das várias histórias que o meu pai contava, como o dia que ele deu um banho em um tiziu (um passarinho preto, bem pequenininho, que dá pulinhos e emite um som parecido com o seu nome).
Ele estava pescando lambaris, praticamente imóvel, com aquela varinha bem fininha de bambu, quando um tiziu sentou na ponta dela.
O bichinho pulava e gritava "tiziu".
Dava um pulinho e caía no mesmo lugar.
Aquilo foi incomodando tanto o meu pai, que ele esperou um novo pulinho e tirou a varinha rapidamente.
Sem o apoio, o passarinho caiu dentro da água e só não se afogou, pois é uma avezinha safada, que adora tomar banho, saindo rapidamente para chacoalhar as penas em um galho de um jambeiro, poucos metros dali.
Eu adorava ouvir também as histórias de peixes grandes, cobras e assombrações que ele sempre contava. Confesso que eu mesmo nunca tinha presenciado nenhum desses três elementos nas nossas pescarias.
Além das histórias, das gargalhadas e da chuva, que sempre nos pegava, fica na minha memória o sabor delicioso dos lambaris (os únicos que pescávamos) bem limpinhos, batidos no fubá e fritos em óleo bem quente.
Ah, e também do Rio Sapucaí, com as suas curvas e tanta discrição. 




sexta-feira, 31 de julho de 2020

Quarentena - 31º dia


Primeiro de maio... Sexta-feira...
Mais exames, mais esperanças e a mesma rotina, a qual já estava bem acostumado. Era uma alegria acordar e ir até o quarto de El Cid para ajudá-lo a levantar-se... Às vezes, eu ouvia um "filho dormi a noite toda" ou um "filho, não dormi quase nada"... A partir da primeira fase dele, eu já sabia o que fazer para deixá-lo mais motivado para as ações do dia.
Muitas vezes, após a saída da cama e o longo tempo que despendia no banheiro (boa parte do tempo gastava penteando a lisa e rala cabeleira, rsrs) era o suficiente para eu cortar a fatia de mamão formosa que ele comia toda manhã, passar o café e iniciar a preparação da vitamina de frutas com aveia que complementava o café da manhã de todos nós.
Era gostoso ouvir na boca dele o "Vaninho", que me apelida (um cabra velho, com quase dois metros de altura e mais de cento e dez quilos, sendo tratado no diminutivo é muito estranho)... Inclusive, até hoje, quando escuto esta forma carinhosa de referência, sei que é parente ou amigo lá de Franca... todos os outros, me tratam pelo meu nome mesmo: Evanir.
Inclusive, esta foi sempre uma questão mal resolvida com o meu pai... A escolha do meu nome. Segundo a minha mãe, deveria ter sido Eduardo, mas pelo meu velho ter um amigo de infância que se chamava Evanir e todos o tratavam carinhosamente por "Vaninho" (que o meu pai achava "o máximo"), fui batizado como tal... As minhas irmãs tiveram "mais sorte" e receberam nomes comuns, Eliane e Érica (tudo bem que a nossa caçulinha recebeu um "K" no seu nome original que lhe rendeu alguns problemas no período da alfabetização escolar que logo foi trocado pelo "C" do português sem estrangeirismos)...
Em boa parte da minha vida, ou melhor, confesso, até hoje, fico muito incomodado quando alguém me anuncia como mulher... Entendo que a terminação "ir" refere-se mais ao feminino, mas em muitos casos poderia ter sido evitada. Imaginem, uma sala de espera de exames lotada, chega a enfermeira com uma ficha na mão e chama a "senhora" Evanir Penna... Levanta um caboclo barbudo de mais de um metro e noventa e barriga na mesma proporção... Todos entreolham-se e muitas, não seguram o sorrisinho maroto. O meu constrangimento só não é maior que o da moça que me chamou (já ficou pior, quando a pessoa me vê e pergunta "a senhora Evanir não está contigo, foi a algum lugar?").
Na adolescência eu era sacaneado diariamente pelos meus amigos, por conta de uma butique que tinha o nome de "Lojinha da Evanir" (com uma florzinha no lugar do pingo da letra "i")... Os caras até mudavam o caminho, só para passarem em frente a ela e me "homenagearem". Até hoje, quando faço um trajeto que passa pelo antigo local, dou risada (já começo a lembrar ainda no muro do EETC, antes de virar a rua).
Eu sempre brinquei com ele que ter me colocado este nome foi uma grande troça, pois ter sido registrado como Edercides também lá não deveria ter sido tão fácil, rsrs... Sempre ouvíamso as variações sobre o nome dele em lugares que o chamavam: Ederleide, Ederclides, Delcides, Ederclives,etc e tal... Nos divertíamos com isso. Fico imaginado como sairia escrito no copo de café da Starbucks... O meu avô Elpídio, pai do meu pai, era criativo para nomes, pois o meu tio, irmão de El Cid, chamava-se Erundward... Viu, simples, não!?
Então, tá justificado. Tinha que ser Evanir mesmo e pronto. Com um "p" no Batista (Baptista) e dois enes no Pena (Penna)... Massa demais.
E assim modelou-se um caráter e uma identidade.


quinta-feira, 30 de julho de 2020

Quarentena - 30º dia

Trinta de abril... Quinta-feira...
Nas quintas-feiras a Teresa ia para casa ajudar a minha mãe na faxina semanal, mas por conta da pandemia, isso não acontece mais... Então divido o meu tempo, neste dia da semana entre os cuidados com El Cid e uma força para a minha mãe no varrer, aspirar, lavar e encerar.
Conversamos sobre a vida no casamento, pois já havia completado um mês que eu estava longe da minha esposa, que ficou em São Paulo, enquanto eu estava fazendo companhia para o meu pai. Vi que este distanciamento preocupava muitos o meu velho... Ele que passou praticamente dois terços da vida dele ao lado da minha mãe, não tinha por hábito distanciar-se dela. Até as viagens eram compartilhadas por todos, influenciando muito as minhas irmãs, que também ao viajarem levavam junto os meus pais... Era engraçado que a minha mãe sempre se prontificava a ir, adorava passear, mas o "seu Edercides" fazia o charminho característico do "podem ir, eu não estou muito afim de viajar, não"... Claro que sempre ia e era quem mais aproveitava os passeios... 
Eu, inclusive, aderi a um desses programas de fidelização de viajantes, que nem sempre representam benefícios, por conta dos meus progenitores, que sempre amaram as águas termais de Goiás e sempre reclamavam dos custos para passar temporadas, lá... Fiquei sócio temporariamente do Rio Quente Resorts, pois sabia que eles curtiam muito o lugar.
A nossa última viagem para o Rio Quente havia sido em julho de 2019, para comemorar os 50 anos do casamento dele e da minha mãe, que trocaram festejar em algum buffet por uma semana de convivência conosco, desfrutando de boa comida, tranquilidade e piscinas de águas quentinhas.
Nestes sete dias, que aproveitamos muito, veio na memória o quanto eles foram companheiros a vida toda, dividindo tarefas domésticas, farturas e carências, a responsabilidade na criação de três filhos, sem perder om respeito mútuo e o amor. 
Uma das qualidades que eu mais admirava no meu pai era o cavalheirismo e o esmero que tinha ao cuidar da minha mãe, quando saíam para passear. Era um verdadeiro protetor, no sentido estrito da palavra, não só em relação à ela como de todos nós...
e descrever um pouco a convivência deles, enquanto casal, citando a força que ele dava para ela, o papel de protetor e o cavalheirismo.
Em construção.


quarta-feira, 29 de julho de 2020

Quarentena - 29º dia


Vinte e nove de abril... Quarta-feira...
O grande barato é a felicidade dele quando os netinhos vem visitá-lo... Parece que ele fica até mais forte... Dá uma alegria imensurável observar como a nossa caçulinha, a Dudinha, curte fazer graça para o meu pai. Ele pede para ela fazer carinho nele e ela atende, prontamente... Gosta de chamar o vovô para passear no quarteirão ou andar de carrinho na praça do bairro... E entende que agora o vovô não pode ir... Daí, pega os seus brinquedos, espalha tudo no chão da sala (onde o meu pai fica a maior parte do tempo, nesta fase de convalescência) e fica por horas brincando e tagarelando com ele...
Ele sempre gostou da presença de crianças e, desde sempre, foi muito carinhoso e atencioso conosco, seus filhos.
Desde o nascimento da Isa, sua primeira netinha, há dez anos, voltamos a ter crianças em casa. Observando a maneira como ele sempre cuidava dos netinhos, lembrou-me muito o amor que eu e as minhas irmãs recebíamos de El Cid, desde sempre. Inclusive, a relação do apelido dele, Cid, de Edercides, com o título de "Sidi" (senhor, em árabe dos mouros), mais a relação com o lendário herói ibérico medieval, o genuíno "El Cid", vem da minha imaginação infantil, relacionando-o às proezas do cavaleiro de capa e espada... Tempos depois, pude conhecer a história do mitológico espanhol, em um livro que era do meu próprio pai (uma edição de bolso, parecida com aquelas da saudosa Ediouro, da década de 70) e, daí para frente, o seu "Edercides" transformou-se, para mim, em "El Cid".
Sempre com a ajuda da minha mãe, ele conseguiu sair do nada e construir uma família digna, com um pequeno patrimônio obtido de maneira totalmente honesta, fruto de um trabalho intenso (junto com a minha mãe, mais uma vez, é importante o reforço), que podemos usufruir até hoje, com prazer e gozo comum.
Atualmente, vejo muitos pais "super protetores", tentando criar uma bolha, uma redoma, que possa poupar os filhos de qualquer sofrimento ou frustração. É uma característica dessa nova geração, a qual me enquadro... O objetivo maior deles é poupar as suas crias das características negativas da convivência em sociedade... Se fosse possível, eles só transmitiriam alegrias para os seus filhos... Com El Cid e a minha mãe, dona Elenice, foi diferente... A tristeza nos foi apresentada desde cedo e sempre. Cenas ruins e exemplos de desigualdade não nos eram escondidos. A prioridade sempre foi a alegria, mas quando acontecia algum imprevisto desagradável, uma situação frustrante ou até mesmo a morte de parentes ou conhecidos não éramos poupados da conversa ou da sua apresentação, "in loco"... Mostrar-nos o lado triste da vida nunca foi crueldade ou "falta de tato", pelo contrário, tinha a intenção de desenvolver em nós a compaixão e a solidariedade... Na nossa casa sempre tivemos amor e um senso claro de justiça, mas este lance de poder enxergar a vida como ela é, de fato, foi fundamental para moldar o nosso caráter... 
Nunca nos deixaram de lado... O que um fazia, todos faziam. Sempre viajávamos juntos, jamais ficava alguém para trás. Quando só podia viajar o casal, eles não iam... Ou saíamos todos juntos ou eles não iam.
Ele, junto com a dona Elenice, desenvolveu em nós, o sentido exato do termo "família".
"Tutu Marambá, não venha mais cá, que o pai da menina te manda pegar..." Assim, dormíamos mais calmos. Sentíamos protegidos... Até pouco tempo atrás, eu já com quase cinquenta anos, um metro e noventa, mais de cem quilos, ao ouvir algum barulho, gritava "paaiii"... Esta sensação de segurança, só mesmo um lendário herói, como El Cid, pode proporcionar... O meu herói, o nosso exemplo vivo.



terça-feira, 28 de julho de 2020

Quarentena - 28º dia

Vinte e oito de abril... Terça-feira...
Ele tinha o dom de conhecer e também apreciava uito qualquer tipo de queijos.
Sempre fazia questão d ter bons queijos em casa e adorava nos presentear com um bom "meia cura" mineiro.
O Gabriel puxou ele e sempre ganhava queijos do vovô, mas não comia na casa dele e só comia os do meu pai... Perguntado porque, o moleque dizia: "o senhor compra um queijo bom para a sua casa e um queijo ruim para a minha" (ele levava queijo fresco para o neto, com sabor menos marcante, mas mais saudável, rsrs)
Em construção.


segunda-feira, 27 de julho de 2020

Quarentena - 27º dia


Vinte e sete de abril... Segunda-feira...
Segundas são sempre segundas... Parece que o astral de El Cid cai um pouquinho após o final de semana... Não é legal acordar e ver ele reclamando que as pernas estão mais fracas e que, talvez, nunca mais volte a andar sem a ajuda do andador ou de muletas. Isso me incomoda em demasia.
Dei corda no relógio de parede também.
É uma tradição de família, este lance de relógio com carrilhão. Todas as casas do lado da parentada paterna tem os seus... Uns mais requintados e estrambólicos, outros menos, mas em todas há a presença do anunciador de horas. O mais antigo está na casa da minha tia, herança do meu avô, que vai ficar comigo. Tem bem mais de cem anos e já não funciona direito, apesar de avaliado em alguns milhares de reais por um antiquário. Não tenho a intenção de vendê-lo, mas não aqui no meu minúsculo apartamento não há um pé direito razoável para pendurá-lo, por isso ele segue no seu local original, lá no bairro da Ponte Grande, em Guarulhos, com promessa de devorar ainda mais gerações dos Pennas (já passaram quatro, pela sua voraz caixa de imbuia).
O do meu pai, é mais novo, com caixa de cerejeira, mais clara, e que anuncia a sua presença a cada quinze minutos... Três badaladas para um quarto de hora, seis para meia hora e assim por diante, sempre finalizando as horas cheias com o total de badaladas extras relativos ao número delas.
A minha vida inteira vi o meu pai dando corda nele, sempre às quartas-feiras, zeloso para não tirá-lo do prumo e, com isso, não interromper o seu funcionamento. Depois, de parar algumas vezes, adaptamos-o aos domingos, para receber impulsionamento, já que irá fazer isso será o meu cunhado. Mas, como estou por aqui, sou lembrado pelo meu pai para fazer isso na segunda de manhã, com os raios solares invadindo a porta de vidro da sala de jantar (que nós, caipiras, chamamos de copa) da casa lá de Franca.
Seu Edercides também tem um outro relógio também, que me foi prometido, mas que só era usado em ocasiões especiais, como jantares em restaurantes, missas e festas mais sociais... É um Technics de pulso, que funciona com o balançar do braço, que muitas vezes, enquanto adolescente foi surrupiado para ser ostentado em alguma ocasião que eu precisasse impressionar alguém (bons tempos que um relógio suíço ainda rendia alguma admiração de uma garota ou amigo).
Nunca curti muito usar relógio e, hoje, ainda menos, pois com a gatunagem aumentando consideravelmente e o celular com os seus alarmes me avisando até da hora dos remédios e programas televisivos preferidos, ele ficou ainda mais descartável, sem utilidade que não seja decorativa.
Mesmo assim, ainda tenho nos meus contatos da agenda telefônica, os números de alguns relojoeiros, como o tradicional e conceituadíssimo Olavo, lá de Franca, um dos poucos que confiaria a tarefa de manutenção nos carrilhões da família, sem medo de ser enganado ou ter a substituição indevida de peças, das duas relíquias...
E, parafraseando o meu sempre bem humorado pai, "não há nada completamente errado no mundo, pois até mesmo um relógio parado, vai estar marcando a hora correta, duas vezes por dia"...


domingo, 26 de julho de 2020

Quarentena - 26º dia

Vinte e seis de abril... Domingo...
Piadista, um contador de histórias... Adorava relacionar os fatos do cotidiano com os causos dele. Até hoje, quando eu e a minha esposa falamos algo que não é muito engraçado, mas que tem uma certa graça, cantamos "Seu Edercides lá, laralará, lalá.." imitando a famosa música do Sílvio Santos quando chamava os seus jurados no Programa de Calouros.
Uma das piadas que ele sempre contava era a da galinha que estava fugindo do alagamento e foi subindo nas partes mais altas do poleiro, depois passou para o telhado da casa e da cumeeira pulou para a antena, mas quando água cobriu tudo e foi chegando já no corpo dela, foi esticando o pescocinho na medida que o seu corpo foi ficando submerso... Daí, quando perguntávamos: "e aí, pai, o que aconteceu?", ele arrematava, "ué, ela morreu). E desmanchava-se num largo sorriso, olhando para os lados, esperando a aprovação geral...


É bem comum, ainda hoje, os candidatos a algum cargo político, prometerem mundos e fundos, usarem uma boa oratória e abusarem de estratégias já consolidadas pelo tempo, para conseguir minguados votos que podem decidir uma eleição.
Mas, apesar da farta falácia e de discursos cada vez menos convincentes da maioria deles, nós eleitores, somos protegidos por uma legislação eleitoral, que deixa cada dia mais difícil, o abuso de práticas incoerentes com uma sociedade democrática.
Inclusive diminuiu um pouco o número de candiadtos folclóricos, que marcavam mais pela sua excentricidade do que pelos projetos de governo.
Um deles, ainda na ativa, estudioso convicto dos métodos populistas das décadas de 40, 50 e 60, principalmente de Getúlio, Ademar de Barros, Juscelino e Jânio, ainda via naquela maneira arcaica de fazer política, uma chance de se eleger a deputado federal.
Montou vários comitês no interior, fazia carreatas por pequenas cidades, bebia café no copo do eleitor, pegava criancinhas pobres no colo, entre tantas outras estratégias, que ainda são permitidos pelo TRE (por "debaixo do pano", ele ainda conseguia um caminhão de terra, meio metro de areia e outros 'agrados" para um ou outro correligionário mais confiável).
Com isso, ia sendo conhecido em cada vez mais lugares deste interiorzão.
Até que, em um desses dias de intensa campanha, decide aumentar a sua capacidade de atuação.
Aluga um Cessna, com piloto e tudo, e arma uma estratégia infalível: deslocar-se de avião entre muitas pequenas cidades, fazendo comícios relâmpagos de poucos minutos cada um.
Decolou bem cedinho, da cidade de São Paulo, e escolheu uma área com dezenas de pequenos municípios, bem próximos entre si.
Antes do almoço já tinha discursado em seis cidadezinhas.
Ao descer na sétima, viu que os seus assesssores montaram o palanque na pista do próprio aeroporto.
Economia primordial de tempo!
Desembarcou rapidamente e já se dirigiu ao microfone:
- "Povo de Santa Rita..."
O seu auxiliar, mais que rapidamente, corrigiu o nosso nobre candidato, já que Santa Rita, seria a próxima cidade.
- "Doutor, aqui é Três Porteiras!"
E o candidato sem pensar, ainda com o microfone aberto:
- "Ah, é tudo a mesma porcaria..."
Elegeu-se, mesmo tendo perdido alguns votos em Três Porteiras!
Em construção...


sábado, 25 de julho de 2020

Quarentena - 25º dia


Vinte e cinco de abril... Sábado...
Hoje, começamos com o feitio de doce de mamão e laranja... Quem ralou a casca foi o meu pai. Sorriso no rosto, contando histórias de um dos principais prazeres dele, que é a degustação de doces caseiros. A minha mãe é uma doceira de mão cheia... Sorte nossa. A matéria prima sempre saiu da nossa chácara...
O grande barato é que ele adorava dizer que tinha feito o doce, ou então soltar o "foi nós que fizemos", mesmo que ele só tenha participado na hora de mexer a mistura... Eu chegava, entrava em casa e ele já me lembrava: "tem doce disso ou daquilo no freezer... Foi nós que fizemos". A minha mãe só balançava a cabeça e dava risada.
O barato é que ele não era obeso, tinha uma massa de gordura magra invejável e uma saúde de ferro.... Achávamos que ele seria o representante da família que passaria dos cem anos.



sexta-feira, 24 de julho de 2020

Quarentena - 24º dia


Vinte e quatro de abril... Sexta-feira...
O dia começou com menos dor, mais esperanças dele voltar a caminhar sem a ajuda de muletas ou do andador.
O meu pai nunca foi muito de ir ao médico... Sempre foi sistemático com dores e doenças. Raramente o víamos reclamar de algo, neste sentido.
Lembro-me, quando criança, que ele foi ao dentista arrancar todos os dentes, por conta de uma nevralgia... Que curava qualquer ferida com iodo e acabava com piolhos usando Neocid (veneno para formigas) nas nossas cabeças.
Ainda me lembro do olhar dele para mim, quando uma ex-namorada observou que as canelas dele estavam com a pele muito seca e se ofereceu para passar um creme.
Eu sempre fui o oposto dele... Desde criança sempre fui de médicos e doenças... Um moleque fraco para essas coisas. Bronquite, rinite, sinusite, resfriados mil...
Hoje, imagino quantos perrengues os meus pais passaram comigo. Por várias vezes, as madrugadas deles eram no pronto socorro, comigo, e no outro dia, bem cedo, já teriam que trabalhar, cumprindo horários e funções. Sou grato a eles...
Por isso, quando tive que amparar o meu velhinho, ajudando-o a tomar banho, a se barbear, fazendo vezes e enfermeiro e até amparando-o para evitar quedas, senti-me estranho... Eu não estava preparado para isso (acho que ninguém nunca está). Ainda hoje o grito de "me segura, filho" de uma quase queda dele, me machuca a consciência... Quem sempre me amparou e segurou foi El Cid, não o contrário...
A gente se prepara para muitas coisas na vida, mas para outras nos guardamos, fingimos que nunca irão acontecer, daí o sofrimento é maior...


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Quarentena - 23º dia

Vinte três de abril... Quinta-feira...
As festas juninas na chácara. O esmero em montar tudo para celebrar os santos juninos.
Fogueira, enfeites, luzes, o altar para o terço, quitutama engordada pelos pratos trazidos pelos convidados. Terço rezado rigorosamente, quadrilha capitaneada pela minha irmã, Érica...
Em construção


quarta-feira, 22 de julho de 2020

Quarentena - 22º dia


Vinte e dois de abril... Quarta-feira...
O trato com as dificuldades cotidianas do meu pai já uma rotina... E ele é muito positivo, bem humorado o que torna mais fácil a lida... Sem falar, que sempre tem muitas histórias.
Uma vez, quando adolescente, li um livro de um escritor francês, que contava a história de um menino, Tistu, com "polegar verde", em que tudo que ele tocava, brotava flores.
Eu sempre associei está história ao meu pai. Ele tinha este dom também...
Por onde viajávamos ele recolhia sementes, que fazia germinar nos fundos da nossa casa e, depois, plantava na nossa chácara, em Cristais Paulista.
Até hoje, temos no pomar inúmeras espécies de laranjeiras e limoeiros, acerolas, pitangas, atemóia, bananeiras, fruta do conde, seriguela, jambo, jambolão, romãs, inúmeros coqueiros, lima da pérsia (que, para nós, caipiras, é só lima mesmo), carambolas, tamarindos, abacates de todas as qualidades, cajueiros (que nunca frutificaram, rsrs), graviolas, mangueiras de diversas qualidades (o orgulho dele era uma que ele chamava de "presidente", sem fibras e muito doce e tenra), mais de uma dezena de jabuticabeiras, mamão, araçá, goiabeiras, abacaxi, lichias, amoras, marmelo, nêsperas (para nós ameixa, mesmo), caquis, maracujás, peras, mexericas, etc, etc, etc... A maioria plantada ou cuidada diretamente por ele.
Daí, desenvolveu também uma das suas características mais marcantes, que era a de produzir deliciosos sucos, frapês e vitaminas de frutas, além de licores extremamente disputados pelos familiares e amigos.
Além de metódico, o nosso Tistu era extremamente curioso... Aprendeu sozinho, pois não usava a internet, a retirar e congelar polpas para os sucos em épocas que não estavam na safra de determinadas frutas... Então, tínhamos no freezer que fica na copa da nossa casa, compartimentos e mais compartimentos de frutas e polpas congeladas, que faziam a alegria de todo mundo.
O orgulho dele era o suco de graviola, já que é algo exótico na nossa região e que ele fazia ficar bem grosso, com um sabor marcante pela maneira que conservava congelada a fruta. Todos, sem exceção amavam a iguaria branca e leitosa, bem adoçada com açúcar cristal.
As acerolas eram lavadas e contadas antes de irem para o saquinho que seria congelado. No número exato de sessenta... Depois, com um canudinho plástico, retirava o ar de dentro da embalagem, um bom nó era feito e ia direto para o congelamento... O suco produzido era de um vermelho hipnótico.
O meu preferido era o de tamarindo... Descascado, fervido, retirava-se as sementes e depois guardava aquela pasta que fazia o mais saboroso néctar que um ser humano poderia provar...
E assim, fazia com várias, mas só aquelas frutas que eram colhidas na chácara... Nunca produziu polpas de algo que veio de fora, sem a certeza que era totalmente orgânico, livre de venenos, tão comuns na nossa agricultura.
Chegou até mesmo a tentar fazer vinho... Até que por uns dois ou três anos ficou muito saboroso, bem encorpado e frutado, mas depois que um fungo atacou a sua parreira, desistiu (a qualidade das uvas caiu muito)...
Outra produção que sempre foi muito disputada pelos mais velhos da família e pelos amigos, era o licor de jabuticaba... Se orgulhava de fazer um "sem álcool", pois não acrescentava cachaça, apenas deixava as frutinhas curtirem no açúcar. distribuía até para os parentes evangélicos. até que entendeu que o álcool era produzido pela fermentação da fruta com o açúcar (na realidade, eu sempre desconfiei que ele sabia disso e pregava uma grande peça na parentada, rsrs). O detalhe é que o licor ficava delicioso... Vou repetir: DELICIOSO.
Este dom foi passado para mim, mas ainda não desenvolvi a maestria de atingir os sabores que ele conseguia, pois não é só misturar fruta, água e açúcar... Segundo ele, até o tempo que o liquidificador fica ligado, altera o sabor do suco. Lenda ou não, ainda não consegui superá-lo...
Um dia, espero ser reconhecido pelas minhas irmãs e sobrinhos, como um "suqueiro" de responsa, igual a El Cid...


terça-feira, 21 de julho de 2020

Quarentena - 21º dia


Vinte e um de abril... Terça-feira...
Meu aniversário.
Se não fosse a covid-19 eu estaria passando esta data com a minha esposa, no Peru... Por conta da pandemia, viagem desmarcada e eu pude ter o privilégio de comemorar os meus cinquenta anos ao lado da minha família e com o meu pai... Foi o último abraço de feliz aniversário que recebi dele. Desde criança os aniversários eram muito simples, mas bem produzidos, com docinhos e bolos caseiros, muito refrigerante, que na década de 70, na minha família era um luxo, só no domingo, quando os irmãos se comportavam durante a semana, ou em dias de festa, mesmo (ah, em alguns velórios também se passavam algumas bandejas com Coca-cola, Fanta uva e Taí, mas só mesmo naqueles que se queria impressionar a parentada)... Um grande barato era quando não tinha refrigerante e o meu pai colocava bicarbonato na limonada para borbulhar e ficar parecido com Seven Up... Como eu odiava aquilo, rsrs, mas até pouco tempo atrás, El Cid dizia que o melhor suco de limão era daquele jeito, "com borbulhas"... Vai entender, né.
Por toda esta lembrança, pedi que a minha mãe fizesse um bolo de laranja com fubá, bolinhas de doce de batata doce polvilhadas com açúcar e biscoitos de polvilho doce, acompanhados de suco de goiaba... Comemoramos na nossa chácara (só faltou a minha esposa, que teve que ficar em Guarulhos, por conta da pandemia).
Um lance legal do meu pai, que sempre nos marcava muito, era a contagem de tempo, em anos, quando comemorava o seu aniversário... Dizia que tinha um terço a menos da sua idade, justificado pelo "tempo que ele passou dormindo", seguindo a recomendação de oito horas de sono diário, na média. Então, quando completasse 84 anos (isso aconteceria em setembro de 2020), faria, na sua conta, 56 anos... Este bom humor, as respostas prontas para tudo e os comentários bem colocados, com o objetivo de nos fazer rir, eram a sua marca... El Cid, o espirituoso. 
Foi, com certeza, a melhor festa de aniversário dos meus últimos anos. Talvez de toda a minha vida...
A última que passei ao lado do "seu Edercides", meu pai, o meu herói.


segunda-feira, 20 de julho de 2020

Quarentena - 20º dia

Vinte de abril... Segunda-feira...
Mais uma vez, o meu pai acordou reclamando um pouco das pernas, que estavam mais fracas que no dia anterior...
Ele sempre trabalhou, desde criança, por isso este período de resguardo por conta da doença que lhe consumia os movimentos era muito difícil... Isso me fazia o entender, bem.
O seu primeiro emprego, tirando aqueles de garoto, entregando jornais, engraxando sapato, foi numa fábrica de doces em Ribeirão Preto, quando a minha avó se mudou com ele para lá, depois de uma briga com o meu avô (eles ficaram poucos meses distantes)... Contava com graça que o que mais gostava era a possibilidade de se fartar de bolachas e afins na "hora da merenda", lá na indústria...
Depois trabalhou com grandes atacadistas no bairro da estação (a loja ficava bem ao lado da estação de trem, mesmo), os irmãos Abraão Jorge... Amou este trabalho. Contava com orgulho o quanto aprendeu e se dedicou lá. Eles tinham contato com vários fornecedores em, praticamente, todos os continentes, por isso recebiam correspondência postal de vários lugares do mundo... O meu pai ficava com os selos e, metódico como sempre foi, organizou uma coleção incrível de selos de vários países do mundo, carimbados pelas respectivas empresas de correios... El Cid era um filatelista amador, auto didata e dedicado (ficou para mim, a coleção). Pena que fixou o selo com fita transparente (da Durex) e, com o tempo, a cola vazou em todos eles, deixando-os amarelados no centro, perdendo o seu valor comercial, rsrs, mas não tem problema, pois não há intenção alguma em me desfazer dela.
Deste período contava como ajudava os "chapas" a descarregarem os caminhões (principalmente aqueles de sacas de arroz) e também das viagens que fazia com eles para buscar mercadorias em outras cidades. O grande barato é que a função do meu pai era administrativa, trabalhava dentro do escritório, mas sempre foi solidário e solícito, por isso desde sempre, era muito querido por todos que o conheceram. Uma história que eu achava bem interessante foi a de uma fiscalização surpresa que a empresa teve, quando dois fiscais extremamente rigorosos acharam o livro "informal" do fluxo de caixa da empresa e o meu pai conseguiu arrancá-lo das mãos deles e saiu correndo, pulando o balcão e se escondendo em um terreno afastado, para ser destruído, posteriormente (isso ele não concordava, não, mas sempre "vestiu a camisa" dos lugares que trabalhou).
Saiu de lá, no começo da década de 70 e foi trabalhar na indústria de solados e colas Amazonas... Não conhecia muito sobre a função que foi designado, mas recebeu o cargo de chefia pela sua inteligência e capacidade de adaptação... Infelizmente, tinha que aprender sobre as diferenças de solados na prática e foi sacaneado por algumas pessoas, que pleiteavam a sua posição... A gota d'água foi uma ameaça de greve que a equipe fez, requerendo melhores salários e ele foi o negociador deles com o patrão... Quando foi pedida a cabeça dos líderes, ele se demitiu. Não podia com injustiças...
Acho que foi a melhor decisão tomada, pois não ficou quase nada em casa... Em pouco tempo já estava empregado na Usina de Laticínios Jussara, o local que trabalhou por mais de trinta anos, tão relevante que não consigo imaginá-lo em outro emprego, a não ser lá... Era conhecido por Penna... O Penna da Jussara.

Terminar com histórias da Jussara, como a do caminhoneiro que sofreu acidente e só mancava quando entrava na firma ou o acidente com ácido que deixou uma cicatriz enorme no braço dele e a sua aposentadoria.

Em construção...


domingo, 19 de julho de 2020

Quarentena - 19º dia


Dezenove de abril... Domingo...
Um sãopaulino comedido...
Sempre torceu pela Francana, mas era tricolor do Morumbi também...
Contava histórias divertidíssimas sobre as equipes do passado, inclusive com uma admiração excessiva pelos estrangeiros como o Poy, o Dario, o Lugano...
Falava também do time que fez o Santos de Pelé sair de campo (nem sei se era verdade ou não, mas era surreal a história).
Conta quando foi assistir um jogo em Ribeirão Preto contra o Botafogo, no Estádio Santa Cruz... Fala muito do Leônidas também.
Vale a pena lembrar do dia que levei ele no Morumbi, pegando um ônibus circular na Praça das Bandeiras, repleto de torcedores arruaceiros e a chegada da Independente que tomou a arquibancada bem no lugar que sentamos.
Vimos um empate sem graça contra a Lusa (o nosso ponta direita era o folclórico Mário Tilico) e no final do jogo ele levou uma "copada" de cerveja nas costas, saindo muito irritado me pedindo para nunca mais convidá-loa ir para o Morumbi... E, nunca mais voltou mesmo.
A sua mais fiel seguidora é a minha irmã caçula, a Érica, sãopaulina fanática, que vivia discutindo futebol com ele e se irritava muito facilmente com as características negativistas de El Cid, rsrs. Inclusive, quando havia jogos do "mais querido" aos domingos, ela ligava a TV lá na chácara e o meu pai sem paciência para assistir o "quebra canelas"  saía para fazer alguma coisa, mesmo sem importância pelos arredores da casa. Quando saía um gol ela ia correndo avisá-lo, mas tinha todo um ritual, rsrs... A Érica gritava, "goool, pai" e ele sempre achava que era do adversário... Era hilário, pois quando o tento anotado era do tricolaço, sempre vinha com um praguejar por parte dele: "pode ter certeza que daqui a pouco eles empatam"... Isso, eu herdei do seu Edercides, o negativismo quanto ao São Paulo F. C., que nos deu tantas glórias nas décadas de 80 e 90, mas que nos últimos anos fez até o Gabrielzinho, netinho de El Cid, pensar em ser palmeirense, rsrs...
Em construção.
PS.: este texto estou escrevendo no dia que ele comemoraria 51 anos de casamento com a minha mãe (19 de julho)... Saudades eternas.


sábado, 18 de julho de 2020

Quarentena - 18º dia

Dezoito de abril... Sábado...
Sábado sempre foi dia de ir a feira, na estação... Era um evento, pois sempre que ele me convidava para acompanhá-lo, vinha com a tradicional frase: "é só meia horinha", mas demorávamos horas entre barracas, desfrutes de iguarias que sempre experimentávamos, longas conversas com os conhecidos que sempre estavam por lá e um brincadeiras na barraca de queijos do Paulo e da Maria Tereza (lá o valor da peça do "canastra", para ele, sempre deveria ser dezenove reais, mesmo quando era vendido a bem mais do que isso).
Eu brincava que ele deveria sair candidato a vereador, pois conhecia todo mundo e sempre tinha uma brincadeira ou lembrança do passado das pessoas que encontrava (e quando não via, brincava, será que morreu?).
O pastel era de praxe... Queijo para ele e carne para mim, acompanhado de refrigerante de guaraná (Antárctica, sempre)...


sexta-feira, 17 de julho de 2020

Quarentena - 17º dia

Dezessete de abril... Sexta-feira...
Seu Edercides, o "faz tudo", curioso e insistente por natureza... Aproveitava tudo o que podia. Algo só era jogado fora, se não tivesse recuperação ou nenhum reaproveitamento, mesmo fora da sua função original... O conceito ecológico já estava embutido na cabeça e na consciência do meu pai, desde que ele se conhecia por gente.
Por um bom tempo, até parafusos e porcas que ele encontrava na rua, levava para casa, pois "sempre poderia ser útil"... Tenho até hoje um prego de dormente de estrada de ferro, no caso da Mogiana, que ele achou na década de 80, próximo da pracinha da Jussara (só quem é de Franca entende esta referência, rsrs).
Outra coisa legal era levar o jornal do escritório da Usina de Laticínios para casa, no final do expediente... Mesmo autorizado pelos diretores, ele esperava todos saírem para ter a certeza que ninguém mais iria ler ainda algum dos cadernos da Folha de São Paulo... Em Franca eram poucos lugares que tinham este privilégio, pois chegavam poucos exemplares do matutino, geralmente no ônibus da Cometa, já no final da manhã... Lembro-me que ficávamos eu e a minha irmã do meio, a Eliane, aguardando a chegada dele, após às seis da tarde, com o calhamaço de notícias, informações e entretenimento, que aproximava a capital dos quatrocentos quilômetros da nossa cidade. Quando ele emorava um pouco mais para chegar, já sabíamos que ele estava esperando a última pessoa sair de lá, para ter certeza que o jornal estaria liberado... Nunca perguntava se podia levar, antes de todos saírem (repito, mesmo tendo a autorização dos donos da Jussara para ficar com o jornal do dia).

Em construção.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Quarentena -16º dia

Dezesseis de abril... Quinta-feira...
Contar as histórias dele nas nossas viagens, em família para a Riviera de São Lourenço, Maceió (a primeira dele de avião), onde ficamos sabendo da morte do Marquinhos pelo Jornal Nacional, o Ano novo em Recife, as idas para Fortaleza, para a baixada santista, desde a minha infância, na casa dos meus avós em São Paulo, os bate e volta para Ribeirão Preto, Bonito/Pantanal, Serras Gaúchas com o overbooking motivado pelo Ronaldinho Gaúcho (ele passou a odiá-lo após isso, rsrs), no apartamento do Toninho em Floripa, Porto Seguro (onde fui travestido por alguns alunos que encontramos lá)... Só não descrever as idas para Ituverava, pois estão no 14º dia...
A sugestão é olhar os álbuns de família para reavivar as lembranças.
Em construção.


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Quarentena - 15º dia

Quinze de abril... Quarta-feira...
Contar as histórias de Franca de antigamente, que ele viveu, desde a influência ferroviária até a vida social da cidade, com nomes dos lugares mais frequentados pelo meu pai, como o Zig Zag (do Olivar), o footing na Praça da Estação.
Em construção...


terça-feira, 14 de julho de 2020

Quarentena - 14º dia

Quatorze de abril... Terça-feira...
Escrever sobre as idas para Ituverava de Variant, inclusive com o quase acidente logo depois que havia comprado o carro e quem dirigia era o Chicão, da Casa Paulista,, quando ele aprendia a dirigir com o Renil e aproveitava para trazer milho para casa, os passeios de bicicleta para o campo de aviação nos sábados à tarde, pegar gabiroba nas moitas...
Em construção.


segunda-feira, 13 de julho de 2020

Quarentena -13º dia

Treze de abril... Segunda-feira...
Descrever as superstições e as lendas que o meu pai contava (contar a história da surra que o Carlinhos levou na casa da tia Maroca, ensinando que não devíamos desrespeitar os nossos pais)...
Ele tinha uma resposta pronta para tudo... Quando alguém dizia que tinha algo igual ao que ele tinha (uma camisa igual, por exemplo), ele logo soltava que não poderia ser igual, pois a "dele já estava paga" e, de fato, odiava comprar algo à prestação (passou a vida inteira sem ter um cartão de crédito).
Em construção.


domingo, 12 de julho de 2020

Quarentena - 12º dia


Doze de abril... Domingo...
Domingo, como sempre, dia de reunião familiar na chácara dos meus pais... E hoje, ele está mais animado.
Já tivemos vários animais, mesmo a contragosto da minha mãe que nunca gostou muito de criações, a não ser dos frangos e galinhas para consumo de ovos da carne... Quando pequeno "herdamos" de um tio que se mudou da cidade, um pássaro preto criado desde filhote em uma pequena gaiola, que deixava apenas o meu pai fazer cafuné na sua cabeça (tinha que chamá-lo dizendo que ia "catar piolho") e que sempre derrubava o potinho de água, depois de tomar banho nele. Tivemos também um "cachorro comunitário", que vivia conosco na rua e dormia uma noite em cada quintal, pois a minha mãe e as dos meus amigos não aceitavam que criássemos um... Quando éramos perguntados sobre o motivo daquele cachorro" estar no quintal, sempre dizíamos que ele era do outro moleque e que estaria ali só por aquela noite (muito tempo depois, meu pai me disse que ele sacava aquele nosso lance, mas não tinha coragem de nos "entregar")... Havia também um papagaio criado solto no quintal da minha avó que ficava entre as laranjeiras, uma codorninha que apareceu do nada na minha casa e foi acolhida como membro da família e seguia o meu pai por toda parte (ele acocorava e ela se escondia nele).
Um traço muito legal do seu Edercides era esse: a facilidade de interação com os bichos, de pelos, penas e escamas... Sempre tivemos galos e galinhas na chácara que acompanhavam ele por toda a parte. Nunca vi uma pessoa que chegava perto dos passarinhos, aqueles livres, soltos, sem espantá-los... Eles viam o meu pai e se aproximavam. E ele conversava com eles... Eu brincava que para ele colocar quirela de milho para os canarinhos da terra, perto da horta, tinha que esconder o pote, pois os bichinhos quase avançavam sobre a comida, antes dele colocá-la no cochinho improvisado em um pedaço de bambu... Quando eu me aproximava, ele voavam rapidamente, pousando em árvores bem distantes.
Uma das preocupações dele, incumbindo a minha irmã caçula era de continuar a alimentar os "bichos da chácara" (a bambeza das pernas já não o permitia se aventurar por entre o pomar e a horta).
O barato é que mesmo quieto, sem se locomover por outros cantos da propriedade o "galo Chico" o seu fiel escudeiro sempre fica ao seu lado, passando o dia à la "Sancho Pança"...
Teve até a pachorra de montar uma caixinha num armário velho da varanda da nossa casa, para acomodar um enxame de arapuás que apareceu lá. Ele se refere a elas como "minhas abelhas", rsrs...
O amor dele é visível nestas relações com os bichos... Nos ensinou a amar, respeitar e conviver, na prática, com exemplos cotidianos.