Via Franca

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domingo, 9 de agosto de 2020

Quarentena - 40º dia


 Dez de maio... Domingo...

Último dia que passei ao lado do meu pai... Na realidade, últimas horas, pois eu viajei logo de manhã para encontrar a Eliane, minha esposa, que estaria me esperando em Pirassununga. A Érica, minha irmãzinha caçula, e o Luizmar, meu cunhado, marido da minha outra irmã que também se chama Eliane, me levariam até ela. Saímos de casa, por volta das nove horas da manhã. Tomei o café com os meus pais (o meu último com ele), conversamos um pouco, cortei mamão para ele e fiz vitamina de frutas, como em todas as manhãs neste período que passei lá em Franca. No dia seguinte, El Cid iniciaria o tratamento de radioterapia para combater a metástase na coluna, de um câncer que nunca soubemos qual foi a sua origem. Ele estava bem ansioso, pois tinha esperança de voltar a andar sem o auxílio do andador, poder dirigir novamente, trabalhar na chácara, ir fazer as tradicionais compras no varejão e na feira, levar o Gabriel, seu netinho, para jogar bola na escolinha, buscar a Isa, outra netinha, na escola, passear com a Dudinha, a caçulinha, na pracinha, entre outras coisas.

Este domingo foi especial, pois o dia dez de maio é o aniversário da minha mãe, o dia que fui batizado e também o meu casamento no civil, com a Eliane. E, em 2020, era o domingo do "Dia das Mães"... Inclusive, quando comecei a escrever estas quarenta postagens, que chamei de "Quarentena", programei para terminá-la hoje, dia 09 de agosto, também um domingo, "Dia dos pais".

Pude passar quarenta dias ao lado do meu pai, desde o dia 01 de abril, relembrando muitas histórias, compartilhando carinho, amor, cuidando dele e aprendendo ainda mais, com os seus ensinamentos e lucidez... Usufrui do seu bom humor, da sua esperança, da dramaticidade de algumas situações e da esperança, que me contaminou até o dia que recebi a notícia, no dia vinte e um de maio, do seu falecimento.

Fui privilegiado... Recebi um presente de Deus, por conseguir me despedir dele, lentamente, com toda a intensidade e saindo de Franca com a certeza que o veria de novo.

Na imagem que postei (desculpe-me, mamãe, por colocá-la de pijama na postagem, rsrs), eu já estava dentro do carro, me despedindo deles... Já tinha ganhado um beijo, um abraço demorado e um pedido carinhoso para me cuidar... Nos despedimos com o tradicional "eu te amo", quando lhe pedi a benção... É a última foto dele... 

Foi a última vez que o vi... Foi a nossa despedida...

Te amo, pai. Te amo...



 


sábado, 8 de agosto de 2020

Quarentena - 39º dia

 

Nove de maio... Sábado...

Festa de aniversário da Dudinha, na casa da Érica. Por conta do isolamento imposto pela Covid-19, os presentes eram apenas nós, da família próxima: El Cid, mamãe, André, Érica, Gabriel, Dudinha (que já havia completado dois aninhos no dia 19 de março), Eliane (minha irmã), Luizmar, Isabela e eu...

Foi nossa última festa juntos, na casa da Érica, depois dela sempre terá uma ausência sorridente nas nossas fotos... Ele gostava de celebrar... Fez questão de tirar o andador, para não aparecer com ele na imagem. Eu fiquei temeroso, já que El Cid perdeu praticamente toda as suas forças nas pernas, mas confesso agora, que fiquei feliz por ele ter feito isso... Guardamos a imagem invencível, indestrutível que ele sempre passou para todos nós.

Lembramos de uma história antiga, que nos garantiu boas risadas... Quem já morou ou dirigiu no interior do nosso estado, sabe que a condução do veículo é bem diferente daquela da capital.

Como em São Paulo o trânsito flui mais agressivo, com muito mais carros do que em qualquer outra cidade do Brasil, acaba gerando um acordo tácito entre a maioria dos motoristas.

Por incrível que pareça o uso da seta é mais comum aqui, na capital do estado, do que em outros lugares e muitos motoristas cedem um pouco do espaço que poderia ser ocupado pelo seu carro para que o condutor consiga sair da sua vaga ou de uma parada obrigatória numa rua mais movimentada.

No interior não tem isso, não!!

Muitos nem se lembram de ligar a seta, odeiam diminuir a velocidade para outros passarem (inclusive para pedestres) e acham que possuir um carro, os diferencia daqueles que andam pelas calçadas.

Por isso, quando ando a pé ou de bicicleta pela minha cidade, redobro a atenção, ao atravessar ruas e avenidas. Aqui, na metrópole, também me cuido, mas sei que muitos vão me permitir atravessar a rua entre o seu carro e o da frente, sem acelerar de maneira ruidosa (excluo, aqui, os motociclistas).

Tanto que, ao vir com o meu pai para cá, fui atravessar uma rua movimentada de Guarulhos entre dois carros (o de trás diminuiu para que pudéssemos passar), mas El Cid titubeou e não quis arriscar-se, negando-se a me acompanhar na "aventura"...

Brinquei com ele, depois de esperar algum tempo para chegar na outra calçada:

- "Poxa, pai, pode ficar tranquilo, porque os motoristas daqui diminuem um pouco para que os pedestres possam atravessar. Da próxima vez, pode confiar!!!"

E ele, de pronto, afiadíssimo, como sempre:

- "Eu não! E se o motorista justo daquele carro for de Franca??"

Pois é, depois desta constatação, eu também nunca mais confiei...




sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Quarentena - 38º dia

Oito de maio... Sexta-feira...

Véspera da festinha de dois anos da netinha dele, a Dudinha... A comemoração seria na casa da minha irmãzinha caçula, a Érica... Mesmo quase dois meses depois do aniversário mesmo dela, a comemoração seria feita, apenas para "os de casa"... Como nos outros dias, El Cid, estava reclamando um pouco da demora em poder voltar a andar, naturalmente, sem apoio ou ajuda de andador.

Ele tinha uma característica que era bem peculiar... Tinha uma facilidade invejável de decorar nomes... Se orgulhava de saber todas as capitais dos países do mundo... Era divertidíssimo conversar sobre isso com ele, pois além de me citar o nome da cidade, também contava alguns detalhes sobre a maioria delas 9as preferidas eram aquelas que tinham alguma relação com a Antiguidade) e ainda existiam... 

O amor dele por mapas era único também. Tinha um atlas e um guia que sempre consultava quando ouvia sobre os lugares... mesmo quando conhecia bem, ia dar uma conferida lá...Antes de qualquer viagem nossa, ele pegava o Guia Quatro Rodas do começo dos anos 2000 para verificar as cidades que passaria no caminho para contar histórias delas no carro (nas últimas décadas virou passageiro, então tinha muito tempo para ficar "observando as paisagens" no deslocamento, característica que herdei dele, com certeza)... Desde criança, nos dinos da Viação Cometa, El Cid vinha narrando as localidades que estariam no caminho até  terminal rodoviário da Praça Júlio Prestes (aquele com acrílicos coloridos, bem psicodélico, que não existe mais)... Anuncia com boa antecedência, sempre com alguma história pessoal naquelas que ele já tinha pisado, Batatais, Brodowski, Ribeirão Preto (a sua preferida, que nutria "falsa rivalidade", rsrs), Cravinhos, Porto Ferreira, Pirassununga, Leme, Araras (que a Érica quando criança perguntava se era "Araras Quaras"), Limeira (a parada mais antiga para banheiro, onde ele se levantava antes mesmo da chegada, para deixar bem claro que conhecia bem o trajeto), Americana, Sumaré, campinas, Jundiaí e São Paulo... Quando eu viajava sozinho, mesmo fora do Brasil, ele usava oseus livros e material de consulta para conversar comigo sobre onde eu iria... Era detalhista, pois gostava de saber sobre pequenos trechos, específicos, que eu poderia não ter atenção... Era extasiante, quando me apontava algum detalhe que tinha me fugido, no meu planejamento e íamos pesquisar juntos, no meu celular ("filho, dá uma olhada sobre isso...")...

Por falar em viagens, era o único, notem a palavra que usei, o único, que me pedia para ver as fotos das minhas viagens... Como adorava ver fotografias... Eu fazia uma segunda viagem quando as mostrava para ele... Inclusive, em muitos lugares os cliques eram feitos para uma posterior conversa com ele... Lembro-me quando fui para o  meio oeste americano, em julho de 2018, e fotografei Monument Valley de diversos ângulos... Divertimo-nos muito, depois, tentando lembrar de filmes de faroeste rodados naquelas paisagens... Eu tirava muitas fotos para ele, pois tinha a certeza que o meu pai, viajava pelo meu olhar. Eu sabia que ele jamais conseguiria conhecer as paisagens das novelas de cavalaria, o solo onde Cristo percorreu, os desertos de beduínos e tuaregues, os portos de onde saíam barcos vikings, as montanhas disputadas por indígenas e colonos americanos, as cidades das "mil e uma noites", a Itália de Puccini... Então, eu viajava também por ele.

Os velhos álbuns de fotografia, cuidados com esmero e guardados até hoje dentro do móvel da sala, são testemunhas da sua paixão em registrar momentos importantes da nossa família... Temos uma linha de tempo rica, organizada por ele... Uma pessoa que gostava de ficar em casa, mas também amava lugares distantes. Com isso, assistia muita TV e amava programas de viagens e documentários, onde um dos seus preferidos era o "Brasil Visto de Cima", religiosamente assistido todos os dias que passava... Quando eu estava em Franca, víamos juntos... Ele adorava "trocar uma ideia" sobre os lugares que eu já havia passado, visitado e que era mostrado no programa ("você viu isso lá, filho?", "não é aquilo que apareceu na foto que você me mostrou"?)... Confesso que até hoje, não consigo assisti-lo mais... Dá um aperto no peito... Tenho que superar isso.

O meu amor pela história e geografia, vem bastante da influência do meu pai... Os velhos álbuns de fotografia, cuidados com esmero e guardados até hoje dentro do móvel da sala, são testemunho disso.


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Quarentena - 37º dia

Sete de maio... Quinta-feira...
Noite tranquila, El Cid acordou de muito bom humor... Brincou, como todos os dias sobre a quantidade de remédios que tomava... Comeu bastante... Demos muitas risadas, nós três, na mesa de um desjejum que demorou bastante...
Uma parte da conversa foi sobre loterias e jogos de azar...
Sempre tivemos na família pessoas que gostavam de apostar em alguma forma de jogo... Felizmente, nada compulsivo, como aquelas velhinhas que frequentam o submundo de bingos clandestinos ou os fanáticos pelo colorido iluminado dos caça níqueis que estão espalhados por botecos da periferia da grande São Paulo. Seu Elpídio, meu avô paterno, amava os carteados e, até o seu passamento, sempre fazia os seus joguinhos na loteria esportiva e na Loto... Chegava a suar frio, quando acertava algum número na sua conferência (não me lembro dele ter acertado mais do que dois números em nenhum jogo, rsrs). Esta sua mania (ou seria vício?) passou para o seu filho do meio, no caso o meu pai...
Sempre que pode, El Cid, fazia os seus joguinhos (preferia a megassena), usando a mesma combinação de números que retirava das datas de nascimento dele e da minha mãe: 10, 05, 48, 21, 09 e 36.
Ele fazia sempre a aposta mais simples e dizia que gostaria de acertar junto com outros apostadores (não queria ser o "único ganhador") para que não chamasse muito a atenção... Gostava do "anonimato, discrição para estas coisas", rsrs... Claro, que não jogava sempre, mas conferia impreterivelmente os resultados, apostando ou não... Inclusive, anos atrás, quase chorou de raiva, pois teria acertado uma quina, se tivesse se arriscado na lotérica.
Todo domingo, até um bom par de décadas trás, ele saía com o cachorrinho da família, o Zuzu, até a pracinha da Jussara para comprar o Comércio da Franca e conferir o resultado do sorteio do dia anterior (como já escrevi, fazia isso mesmo quando não jogava)... Era uma rotina semanal bem interessante.
Num desses domingos em que eu estava em Franca, acordei muito cedo e entrei no computador para ler algumas mensagens.
Ao abrir a página do site, vi que havia um único acertador da megassena acumulada, justamente da cidade de São Paulo... Anotei os números que foram sorteados, em um pedaço de papel, e esperei o meu pai chegar com o jornal. Ao entrar na cozinha, fui até ele e mostrei o papel que eu havia copiado da tela do computador, dizendo que eu os havia jogado durante a semana, mas tinha deixado o bilhete no bolso do meu jaleco de professor, na escola.
Ele achou interessante a minha iniciativa, já que eu nunca aposto em nada que envolva dinheiro ou outros bens... Brincou até que a minha sorte de principiante poderia trazer algum acerto...
quando começou a conferir os números, acreditando que eu havia jogado, de fato, arregalou os olhos e começou a tremer (o jornal balançava, nas suas mãos, como se estivesse numa manhã de muito vento, igual às "frescas" que sempre sopram na nossa cidade)...
Olhou para mim e com voz embargada, me perguntou se era verdade mesmo... O riso aberto de galhofa foi substituído por outro de tensão!!!
Óbvio que, temendo o pior, eu disse que era uma brincadeira, pois eu já sabia a sequência sorteada...
Até hoje, eu não sei se a expressão dele após aquele momento foi de decepção ou de alívio...
Mas, a certeza que ficou foi que perdi totalmente a credibilidade em relação a algum sucesso que eu pudesse ter em sorteios e rifas... Tudo bem que nunca mais apostei, nem em título do tricolor do Morumbi.




quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Quarentena - 36º dia

Seis de maio... Quarta-feira...
Novamente, acordou com um pouco de pessimismo em não conseguir o movimento pleno das pernas,,, Para quem sempre foi irrequieto, gostava de caminhar, isso era um tormento.
Não sei exatamente o porquê, mas nesse dia lembramos do "dia de Reis", comemorado em 06 de janeiro... Lembranças que me remeteram ao nosso cotidiano simples, de gente caipira, que sempre valorizou as tradições culturais...
Nem tenho certeza se meu pai curtia tanto assim os reisados (as cavalhadas, tenho certeza que amava), mas El Cid sempre me levava para acompanhá-los.
Um adendo histórico: apesar de ser uma tradição portuguesa, inspirada na tradição católica de visita dos três Reis Magos ao menino Jesus, as Folias de Reis chegaram ao Brasil no século XVIII e se popularizaram entre os habitantes de muitos estados (principalmente Minas Gerais, Goiás e São Paulo)... É, inclusive, patrimônio imaterial do estado de Minas Gerais.

Desde criança, a minha ligação com as folias sempre foi muito grande... Para mim, elas representam uma das manifestações populares mais autênticas e expressivas que existem... O meu avô materno, Antônio, as apreciava e ouviu todas as suas variações até próximo do seu passamento... O meu pai até bem pouco tempo atrás, ficava antenado nos dias de apresentações delas, lá na nossa Franca, e me ligava: "filho, sábado tem apresentação das folias, lá na exposição... Você vem?" E, eu ia... E ficávamos horas no meio da festa (os meus olhos marejaram, agora).

Faço um aparte, para acrescentar nestas memórias, outras personagens também muito significativas para mim (e que também eram para El Cid)...

O que me marcou mesmo sobre os reisados, foi na infância, no sítio da tia Geralda, lá em Ituverava, próximo ao povoado de Capivari da Mata, quando eu ia passar férias com a minha vó Zilda, a minha madrinha... Como sempre estávamos lá entre o Natal e o dia de Reis, era comum presenciar as apresentações das folias, no sítio dela...

Lugar bucólico, sem energia elétrica, iluminado por lamparinas à querosene, dormia-se muito cedo ("com as galinhas", segundo uma expressão muito usada na época)...Mas, nas madrugadas sempre vinham os foliões com as suas bandeiras, roupas coloridas, violas, sanfonas e pandeiros enfeitados com fitas... Lembro-me de acordar com uma música bem distante e olhar pela janela, na amplidão do pasto que rodeava a antiga casa, enxergando as luzinhas cintilantes dos candeeiros deles... O coração já acelerava... A música crescia na medida que se aproximavam e havia toda uma reverência para adentrar a casa... Sempre era oferecido cachaça para os foliões, dinheiro na forma de esmola para a igreja e um delicioso bolinho de polvilho, servido para todos, com café (não era o biscoito tradicional que conhecemos aqui em São Paulo, mas um bolinho sovado com erva doce e frito na hora, crocante por fora e muito macia no seu interior, uma das especialidades da minha família, para a "merenda").

Os foliões cantavam, dançavam e bebiam muita cachaça... E nós, da casa, ficávamos ali atônitos, extasiados, hipnotizados pelo colorido e pelas vozes agudas e bem afinadas... A reverência de oferecer a bandeira para a dona da casa, que a beijava e era consagrada por ela, tinha uma beleza ímpar.

Lembro-me que os palhaços sempre me assustavam e para amenizar os meus primos, bem mais velhos do que eu, Francisco, Maria das Graças e Antônio José, me diziam: "deixa disso, moleque, é o Acácio da tia Jerominha que tá vestido assim para zombar de ti..." Era nada, rsrs, o Acácio era bem mais alto e gordo que aquele marungo!!!!

Os foliões eram todos lavradores, vizinhos da tia Geralda (muitos até nossos parentes), que haviam trabalhado o dia todo na roça, na enxada, debaixo de sol e chuva, mas à noite se transformavam em seres divinos, que trocavam o seu cansaço pela alegria de louvar e encantar a todos nós... Era sublime...

Tem cenas que sei que nunca mais vou viver, até mesmo porque faltarão os seu protagonistas... Esta é uma delas... Felizmente, ainda está viva e bem forte na minha memória... Pulsando, como a figura de El Cid.



terça-feira, 4 de agosto de 2020

Quarentena - 35º dia

Cinco de maio... Terça-feira...
Seguem os exames preparatórios para a radioterapia... A maior esperança do meu pai é voltar a caminhar sem o uso de apoio... Ele chegou até a confidenciar para a minha mãe, que se não voltasse a caminhar, perderia todo o sentido de "continuar seguindo".
A nossa família é bem sólida e sempre foi valorizada por El Cid e pela dona Elenice... Mas, mesmo eu e as minhas irmãs criados de maneira idêntica, crescemos com características e personalidades muito distintas.
Como primogênito eu sempre fui o "centro das atenções", mas sofri um baque com o nascimento da Eliane, minha primeira irmãzinha, aos meus cinco anos de idade.
Inicialmente, tive muita curiosidade e até curti, mas quando tive a certeza que deveria dividir as atenções gerais também com aquela pequenininha, foi terrível...
Baixou o ciúme... Nunca me deixaram esquecer que no primeiro aniversário dela, a minha mãe teve que espalhar os brinquedos pelas duas camas, cantar parabéns para os dois e fingir que comemorava alguma coisa também para mim. os parentes até tinham se acostumado com os ataques de choro e birra, quando a pequenininha recebia mais atenção.
Independente disso, crescemos com aquela boa cumplicidade de irmãos (uma exigência dos meus pais), sempre unidos, socializando brincadeiras, aprontando muito e sofrendo todas as consequências, também juntos, das incontáveis travessuras.
As brigas eram comuns, mas foram diminuindo com o tempo.
Até que, surge uma nova pessoinha.
Quatro anos mais nova que a Eliane, era ainda mais mimada e protegida do que nós, os mais velhos.
Sempre foi bonitinha, calma e muito meiga, por isso todos se encantavam com ela, principalmente nós, seus irmãos.
Morávamos numa casa muito pequena, de fundos, na Rua Francisco Társia, bem no coração da Vila Nova, construída no quintal do terreno da casa da minha avó. Tinha dois quartos que, antes da chegada da caçulinha, eu tinha exclusividade em um deles e o outro era dividido entre os meus pais e a Eliane.
Com mais uma criança na casa, comprou-se um beliche para acomodar a Eliane e eu no quarto que antes era só meu e o bercinho passou a ser ocupado pela Érika.
É claro que, essa obrigação de dividir o espaço do pequeno quarto, fez surgirem novas rusgas entre os irmãos mais velhos. Brigava-se por quase tudo, mas principalmente pelas preferências distintas, em relação à iluminação do quarto. Eu, que dormia na parte de cima e tinha a luz bem no meu rosto, queria a lâmpada apagada. A minha irmã do meio que, por dormir embaixo, tinha uma pequena penumbra proporcionada pela presença da cama de cima e tinha muito medo do escuro, queria o quarto iluminado (dizia que a escuridão lhe dava "falta de ar"). E a caçulinha, no quarto dos meus pais, reclamava que não conseguia dormir por conta da bagunça no nosso quarto.
Hoje, todos lembramos com graça disso tudo, pois chegava a ser uma cena de "comédia pastelão"... Eu descia do beliche e apagava a luz. A Eliane esperava eu subir de volta, me cobrir, e ia até o interruptor e acendia-a. Eu descia, apagava-a novamente, ameaça a minha irmã e voltava para a cama... Ela esperava um pouco e acendia de novo.
E, assim a noite avançava, com um fim só quando algum dos dois cedia.
Mas, a história que eu e meu pai lembramos nesta data, foi um dia que ninguém cedeu e, por isso, começou uma algazarra infernal. Daí, El Cid, bem impaciente, exaurido por um dia cansativo e influenciado pelos pedidos da irmãzinha menor que não conseguia dormir (na realidade eu acho que ela queria estar conosco, no fuzuê), resolve intervir.
Vai até o quarto, chama a nossa atenção de maneira ríspida e decreta:
- "Se eu ouvir mais um pio neste quarto, os dois vão dormir quentes (é fácil entender o que é dormir quente, né?)..."
Quando tudo levava a crer que a paz estaria reestabelecida naquele local, armistício decretado, ele vira as costas e a Eliane sacramenta:
- "Piu..."
Gargalhada geral, uma boa surra e a caçulinha no outro cômodo, de alma lavada pelo corretivo aplicado, vibrava: "isso, papai, bate mesmo nesses moleques..."
E, assim, era sedimentada a união de nós três, que existe até hoje entre eu e as minhas irmãs.




segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Quarentena - 34º dia

Quatro de maio... Segunda-feira...
Levantamos bem cedo para fazer uma tomografia no Hospital do Câncer, de Franca... Quem nos levou, dessa vez, foi a minha mãe... O medo do Covid-19 era visível, mas mesmo assim, sentimos um pouco de descaso por parte de muitas pessoas... Parece que poucos, como nós, estão levando a sério o isolamento e as recomendações para evitar o contágio. Ficamos tristes, por esta situação.
No hospital, fizeram umas marcações no tórax dele, como se fossem um X de alvo para atiradores... Demos muitas risadas disso, pois a sugestão era dar estilingues para os moleques lá de casa, deixar El Cid sem a camisa e usá-lo como "alvo móvel" para tiros de castanha de coquinho catarro... Isso rendeu piadas para quase uma semana.
Ele sempre curtiu muito o tempo que teve como militar, ou no tiro de guerra de Franca ou na Marinha, no Rio de Janeiro. Gostava muito da ordem, da hierarquia e, principalmente, de armas, em geral.
Sempre teve várias e se orgulhava de uma Winchester que levava sempre consigo nas pescarias, quando solteiro (teve que vendê-la depois do meu nascimento, mas ainda continuou com um Mauser, escondida no guarda-roupa). Uma dessas histórias, que ele contava sempre, foi numa viagem de diversão com outros amigos (iam de Lambretas) para o Rio Sapucaí-mirim, que atravessa municípios vizinhos da nossa cidade, ficaram dando tiros na superfície da água, só para ouvir o "assovio" que o projétil fazia ao se distanciar. Claro que isso, chamou a atenção de um segurança de uma fazenda próxima, que se dirigiu até o local para verificar o que estava ocorrendo (a caça sempre foi proibida na área). Ele contava que o homem chegou no grupo, os repreendeu e disse que teria que confiscar a arma. Um dos dos amigos do meu pai, conhecido como Barbeiro, que estava com a Winchester na mão, disse categoricamente, que seria um "ato temeroso" tentar retirar sozinho e desarmado, uma arma das mãos de quatro desconhecidos... Parece que o argumento foi bem razoável, pois o segurança foi demovido da sua ideia original, mas mesmo assim saiu ameaçando o grupo de denúncia na força policial. Claro, que eles nunca mais voltaram ao local e, acredito, seriam incapazes de atirar em alguém (em relação a El Cid, tenho certeza disso).
Após a morte do meu avô, ele também herdou um 38 cromado que foi entregue na delegacia, junto com a outra pistola, depois do decreto de desarmamento, de anos atrás... Era muito engraçado, pois sempre que íamos viajar, ele brincava que não podia esquecer de levar o "38 dele"... No caso, era o chinelo (ele calçava 38, rsrs)...
Sempre admirei o bom humor e a seriedade dele e, mesmo odiando armas, gostava de ouvir as suas boas histórias sobre elas.
 

 

domingo, 2 de agosto de 2020

Quarentena - 33º dia

Três de maio... Domingo...
Mais uma vez, dia de irmos para a chácara.. Expectativa para o exame do dia seguinte que irá direcionar o tratamento com a radioterapia... Já levantamos conversando sobre isso. Há uma esperança incrível, que a radiação ataque o tumor e que ele volte a caminhar sem o andador, que volte a ter firmeza nas suas pernas.
Certa vez, ainda pequeno fui levado para a empresa que meu pai trabalhava para acompanhá-lo em algumas horas de "serão noturno" para recuperar um pouco do serviço atrasado.
Era uma usina de laticínios, bem conhecida na cidade, e ele trabalhava no escritório dela, cuidando de alguns papéis da contabilidade.
Ele me colocou em uma das mesas do fundo e ficou na escrivaninha dele, datilografando algumas saídas de produto.
Eu peguei uma folha de papel e comecei a desenhar... Curioso, como qualquer criança de oito anos, ao vê-lo cioso com as notas fiscais, comecei a mexer na mesa que eu estava sentado. Peguei na gaveta outras canetas, um lápis borracha, algumas folhas de papel carbono e dois carimbos.
Num deles eu li o nome da pessoa que era a responsável pela mesa que eu estava acomodado.
E, pasmem, ela tinha o nome muito semelhante da minha avó materna, que cuidava de mim durante o dia e que, naquele exato dia, tinha me delatado para a minha mãe uma malcriação que eu tinha cometido, resultando em uma pequena dura.
Mordido com aquela situação que acabava de voltar à minha mente, irado com a minha avó, eu não pensei duas vezes: peguei uma das folas de papel e escrevi os maiores impropérios que eu conhecia, usando o nome da minha avó como sujeito, mas que era quase homônima à dona da mesa em que eu estava.
Raiva destilada, já leve por ter podido colocar em palavras tudo o que eu sentia naquele momento, piquei em pedacinhos bem miúdos aquela folha de papel e atendo o chamado paterno para deixar o escritório e voltar para casa.
Tudo perfeito, só que eu não tinha percebido um pequeno detalhe: a folha de papel que eu tinha utilizado era um dos carbonos que eu havia retirado da gaveta.
N outro dia, a quase xará da minha avó, ao sentar-se na mesa, quase teve uma síncope, ao ler vasto "conteúdo atentatório contra a sua pessoa".
Deu um "piti" homérico, um escândalo daqueles, que abalou a pacífica estrutura do local.
Os chefes foram chamados, os funcionários foram convocados e, antes de qualquer investigação mais minuciosa (ela já tinha acusado um contínuo que "não morria de amores por ela"), o meu pai ao se aproximar da mesa, sentenciou de maneira extremamente honesta:
- "Esta é a letra do meu filhos, que eu trouxe comigo ontem à noite, quando vim terminar o trabalho após o expediente!"
Nem precisava escrever que ele foi firmemente repreendido e quase demitido.
Além de muito envergonhado, o meu velho estava muito nervoso e, por sorte, foi parado pela minha mãe antes de me encontrar.
Após ouvir atentamente a história que foi contada para ela, percebi que eu levaria uma sova daquelas...
Casa pequena, eu no quarto sem ter como pular a janela, que estava trancada, ao ouvir o meu nome, não pensei duas vezes, fui correndo para o banheiro e me tranquei lá dentro.
O meu pai batia na porta e me ameaçava, dizendo que, se eu não abrisse, o "coro seria dobrado" (já dá para imaginar o significado de "coro", para esta situação).
De jeito nenhum eu abriria aquela porta.
Aguentaria ali, sentadinho no trono, bebendo água da torneira e rezando por, pelo menos, duas semanas...
Como ele viu que ameaças não me intimidariam, pegou uma chave reserva na gaveta e colocou na fechadura (quem tinha criança pequena em casa, sempre guardava "chaves reservas" na gaveta).
Após isso, o que transcorreu foi quase uma "comédia pastelão", pois ele girava a chave para abrir a porta e eu, do lado de dentro, girava ao contrário para mantê-la fechada.
Como não daria em nada, caberia somente um acordo mútuo para por fim ao impasse.
Após quase duas horas de intransigência e mais calmo, ele me pediu para sair, pois só tínhamos um banheiro em casa e a minha irmãzinha queria usá-lo (eu tinha percebido o choro dela).
Fiz ele me garantir que não me castigaria.
Como ele sempre foi um homem de palavra, abri a porta, após a promessa que não levaria uma surra dele.
Naquela noite, apanhei da minha mãe...


sábado, 1 de agosto de 2020

Quarentena - 32º dia

Dois de maio... Sábado...
Hoje mais disposto, foi receber o entregador de gás... Conversaram um pouco sobre a vida e El Cid ficou feliz em receber votos de melhoras... Ele valorizava muito ter a simpatia das pessoas que não tinham uma convivência diária com ele... Gostava mesmo de agradá-las e ser útil, até mesmo aos quase estranhos.
Hábito comum no interior é a pescaria.
Hoje em dia, com rios poluídos e poucos peixes à disposição, cresceu o número de pesqueiros, os famosos "pesque e pague".
Mas, no tempo que ainda se "amarrava cachorro com linguiça", a atividade era feita à beira de rios e córregos, sentado no barranco, municiados com varinha de bambu e minhoca.
Lembro-me das minhas primeiras pescarias ao lado do meu pai.
Íamos sempre em número suficiente para evitar qualquer tédio, caso não aparecesse algo que quisesse se submeter aos nossos anzóis.
A preparação começava na véspera, com a escolha da vara correta, específica para cada tipo de peixe.
Eu era encarregado de conseguir um bom número de anelídios, que eu buscava nos canteiros da horta dos fundos da casa da minha avó.
Tinha que fazer escondido, pois aquela história que "cada enxadada era uma minhoca" é coisa do folclore futebolístico. Eram muitas enxadadas, que deixavam os canteiros praticamente destruídos, por isso tinha que fazer em um horário que ela não estava na residência.
E, depois tentar ajeitar um pouquinho as cenouras, beterrabas e almeirões caídos.
Compravam-se mantimentos e muita cachaça (pena que o excesso e bebida acabava com a pescaria de algumas pessoas). Para a molecada fazia suco de groselha, que era colocado em garrafas limpas de leite. Nos dias mais frios também levava-se, em garrafas térmicas, café e um pouco de chá de cravo, para amenizar o frio úmido e cortante da beira do rio.
Não existia vestimenta específica para a pescaria.
A minha mãe só deixava eu usar uma roupa bem velha, complementada por botinas e um boné.
O transporte era uma velha Rural do meu tio, que ia apinhada de tralhas e pessoas.
O almoço era feito no próprio lugar, em uma parte mais afastada do rio, entre as árvores.
Lembro de uma vez, que El Cid fora encarregado de fazer o almoço, mas cozinhar não era o seu ponto forte, rsrs... Foi inesquecível... Ele lavou bem os grãos, escorreu, picou cebola e alho e colocou para refogar em uma pequena porção de óleo de milho, junto com o arroz.
Tanto arroz que quase chegou até a boca da caçarola (era muita gente).
Completou com água e ficou observando a sua grande aventura culinária, comigo ao lado, dando uma força.
Depois de um tempo, vimos que a tampa da panela estava estufando com o arroz crescendo e quase saindo da mesma. Ele não pensou duas vezes: colocou uma pedra em cima da tampa.
Naquele dia, os peixes foram "cevados" com uma pelota de arroz bem temperadinha e nós passamos a Biscoito Mabel.
Lembro-me também das várias histórias que o meu pai contava, como o dia que ele deu um banho em um tiziu (um passarinho preto, bem pequenininho, que dá pulinhos e emite um som parecido com o seu nome).
Ele estava pescando lambaris, praticamente imóvel, com aquela varinha bem fininha de bambu, quando um tiziu sentou na ponta dela.
O bichinho pulava e gritava "tiziu".
Dava um pulinho e caía no mesmo lugar.
Aquilo foi incomodando tanto o meu pai, que ele esperou um novo pulinho e tirou a varinha rapidamente.
Sem o apoio, o passarinho caiu dentro da água e só não se afogou, pois é uma avezinha safada, que adora tomar banho, saindo rapidamente para chacoalhar as penas em um galho de um jambeiro, poucos metros dali.
Eu adorava ouvir também as histórias de peixes grandes, cobras e assombrações que ele sempre contava. Confesso que eu mesmo nunca tinha presenciado nenhum desses três elementos nas nossas pescarias.
Além das histórias, das gargalhadas e da chuva, que sempre nos pegava, fica na minha memória o sabor delicioso dos lambaris (os únicos que pescávamos) bem limpinhos, batidos no fubá e fritos em óleo bem quente.
Ah, e também do Rio Sapucaí, com as suas curvas e tanta discrição.