Dois de abril, quinta-feira...
Fui promovido à condição de enfermeiro... Muitos remédios (contamos doze, diferentes), em horários diversos, com um antibiótico de seis em seis horas. Uma sonda urinária que tinha que ser esvaziada em intervalos bem curtos. Foi pedido para o meu pai beber muita água, pelo menos uns dez copos grandes por dia, por isso o saco coletor de urina, sempre estava cheio. Ele nunca foi de beber muita água, a vida toda, mas agora tinha que fazer isso, quase sempre a contra-gosto. Chegava a ser engraçado ver a reação dele quando eu me aproximava com um copo bem cheio, na hora dos remédios... "Um copão desse para um comprimidinho tão pequeno??? Quantos eu já bebi hoje???" E contávamos juntos os "copos".
Eu ajudava a minha mãe a cuidar do cardápio diário e do preparo da comida dele... Moleza, pois sempre gostei da alquimia culinária, que é tradição de família e a cozinha é um dos cômodos que mais gosto. Ela é tão sagrada, que uma lembrança de infância era o fato que, nem todos que chegavam em casa, tinham o trânsito livre por ela. Somente os mais próximos eram convidados a sentar-se junto ao fogão, no canto da mesa, com o privilégio de acompanhar o feitio do que seria servido. As visitas não passavam da sala e no, máximo, compartilhavam as refeições no que chamávamos de copa, uma espécie de sala de jantar formal, destinada à comilança em dias de festa, com louça e talheres que ficavam guardados em uma cristaleira (quase nunca era usada no cotidiano).
A cozinha da minha infância ficava no fundo da casa, com a porta diretamente ligada ao quintal, que facilitava a busca de temperos e ervas para o trato diário das nossas necessidades... No quintal grande tinha taioba, funcho, erva cidreira, camomila, hortelã, salsinha, cebolinha, pequenos e saborosos tomatinhos e o sempre necessário boldo.
Neste dia, o meu pai ainda estava bem debilitado e precisava se alimentar bem, mas não tinha muita fome... Então, priorizamos daí em diante, comidas que não fossem muito gordurosas, mas que ao mesmo tempo pudessem agradar o paladar do nosso enfermo. Comigo, eu tinha um pouco de certeza que quanto melhor ele se alimentasse, menos fraqueza sentiria nas pernas e teria mais energia para segurar o andador, correndo menos riscos de queda, como já havia acontecido semanas antes.
Era estranho olhar para o meu pai e vê-lo senil, precisando de apoio para caminhar e, me incomodava a fragilidade do seu andar, com as pernas frouxas e um arrastar de pés... Isso me mexia muito comigo. Ele sempre foi muito forte e seguro nos seus movimentos. Dirigia o seu Classic prata até dois meses atrás... Subia no abacateiro, nas goiabeiras, jogava basquete conosco na quadrinha de cimento grosso lá da chácara. Raramente o via adoentado, mesmo nos surtos de resfriados e gripes que acometiam a todos, o seu Cid nunca era atingido.
Tivemos uma conversa bem longa, no meio da tarde, antes do farto café que é servido lá em casa (tradição desde sempre). Ele me disse que não entendia porque as pernas estavam "bambas"... Já tinha passado por vários médicos e gostaria que algum deles tivesse diagnosticado o problema e receitado um medicamento que o fizesse a voltar a caminhar sem apoios. Ele não sabia, mas todos nós já tínhamos um parecer clínico de um neurologista... Um tumor pressionava a sua coluna (mais precisamente a T3) de dentro para fora, na medula. O quadro era bem grave, principalmente devido a este tumor já ser resultado de uma metástase que ainda ainda não era certa a sua origem.
Por não sentir dor ou qualquer outro sintoma, além da dificuldade em manter-se de pé, o que ele mais queria era voltar a andar... Eu acreditava ser possível, mas naquele momento, o que mais nos preocupava era a hemorragia que o tinha levado ao hospital dias antes. Necessitava-se, em primeiro lugar, acabar com a infecção... Inclusive, a sonda o incomodava bastante.
Além da infecção, do tumor, dos seus problemas físicos, era vital não deixá-lo desanimar... Era necessário o otimismo que ele sempre teve, em relação à tudo, para vencer mais aquela batalha.
Desanimar jamais, sempre manter em alta, a esperança e não deixar abalar a sua fé.
A minha mãe e as minhas irmãs já estavam esgotadas fisicamente e emocionalmente... Decidimos que eu tomaria a frente em todas as ações diretas com ele, pelo menos por alguns dias...Travesti-me de enfermeiro, psicólogo, cozinheiro e cuidador, sem esquecer-me que, acima de tudo eu era filho...
Tive o privilégio de ter recebido a confiança de todos, inclusive dele, em poder participar ativamente da organização da sua rotina... O grande e lendário herói, El Cid, estava agora sob meus cuidados...
Fiquei feliz em ter recebido esta missão e apreensivo em saber se daria conta dela.
Sublime missão.
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