Via Franca

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domingo, 2 de agosto de 2020

Quarentena - 33º dia

Três de maio... Domingo...
Mais uma vez, dia de irmos para a chácara.. Expectativa para o exame do dia seguinte que irá direcionar o tratamento com a radioterapia... Já levantamos conversando sobre isso. Há uma esperança incrível, que a radiação ataque o tumor e que ele volte a caminhar sem o andador, que volte a ter firmeza nas suas pernas.
Certa vez, ainda pequeno fui levado para a empresa que meu pai trabalhava para acompanhá-lo em algumas horas de "serão noturno" para recuperar um pouco do serviço atrasado.
Era uma usina de laticínios, bem conhecida na cidade, e ele trabalhava no escritório dela, cuidando de alguns papéis da contabilidade.
Ele me colocou em uma das mesas do fundo e ficou na escrivaninha dele, datilografando algumas saídas de produto.
Eu peguei uma folha de papel e comecei a desenhar... Curioso, como qualquer criança de oito anos, ao vê-lo cioso com as notas fiscais, comecei a mexer na mesa que eu estava sentado. Peguei na gaveta outras canetas, um lápis borracha, algumas folhas de papel carbono e dois carimbos.
Num deles eu li o nome da pessoa que era a responsável pela mesa que eu estava acomodado.
E, pasmem, ela tinha o nome muito semelhante da minha avó materna, que cuidava de mim durante o dia e que, naquele exato dia, tinha me delatado para a minha mãe uma malcriação que eu tinha cometido, resultando em uma pequena dura.
Mordido com aquela situação que acabava de voltar à minha mente, irado com a minha avó, eu não pensei duas vezes: peguei uma das folas de papel e escrevi os maiores impropérios que eu conhecia, usando o nome da minha avó como sujeito, mas que era quase homônima à dona da mesa em que eu estava.
Raiva destilada, já leve por ter podido colocar em palavras tudo o que eu sentia naquele momento, piquei em pedacinhos bem miúdos aquela folha de papel e atendo o chamado paterno para deixar o escritório e voltar para casa.
Tudo perfeito, só que eu não tinha percebido um pequeno detalhe: a folha de papel que eu tinha utilizado era um dos carbonos que eu havia retirado da gaveta.
N outro dia, a quase xará da minha avó, ao sentar-se na mesa, quase teve uma síncope, ao ler vasto "conteúdo atentatório contra a sua pessoa".
Deu um "piti" homérico, um escândalo daqueles, que abalou a pacífica estrutura do local.
Os chefes foram chamados, os funcionários foram convocados e, antes de qualquer investigação mais minuciosa (ela já tinha acusado um contínuo que "não morria de amores por ela"), o meu pai ao se aproximar da mesa, sentenciou de maneira extremamente honesta:
- "Esta é a letra do meu filhos, que eu trouxe comigo ontem à noite, quando vim terminar o trabalho após o expediente!"
Nem precisava escrever que ele foi firmemente repreendido e quase demitido.
Além de muito envergonhado, o meu velho estava muito nervoso e, por sorte, foi parado pela minha mãe antes de me encontrar.
Após ouvir atentamente a história que foi contada para ela, percebi que eu levaria uma sova daquelas...
Casa pequena, eu no quarto sem ter como pular a janela, que estava trancada, ao ouvir o meu nome, não pensei duas vezes, fui correndo para o banheiro e me tranquei lá dentro.
O meu pai batia na porta e me ameaçava, dizendo que, se eu não abrisse, o "coro seria dobrado" (já dá para imaginar o significado de "coro", para esta situação).
De jeito nenhum eu abriria aquela porta.
Aguentaria ali, sentadinho no trono, bebendo água da torneira e rezando por, pelo menos, duas semanas...
Como ele viu que ameaças não me intimidariam, pegou uma chave reserva na gaveta e colocou na fechadura (quem tinha criança pequena em casa, sempre guardava "chaves reservas" na gaveta).
Após isso, o que transcorreu foi quase uma "comédia pastelão", pois ele girava a chave para abrir a porta e eu, do lado de dentro, girava ao contrário para mantê-la fechada.
Como não daria em nada, caberia somente um acordo mútuo para por fim ao impasse.
Após quase duas horas de intransigência e mais calmo, ele me pediu para sair, pois só tínhamos um banheiro em casa e a minha irmãzinha queria usá-lo (eu tinha percebido o choro dela).
Fiz ele me garantir que não me castigaria.
Como ele sempre foi um homem de palavra, abri a porta, após a promessa que não levaria uma surra dele.
Naquela noite, apanhei da minha mãe...


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